Entre o medo e a esperança
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Domingo, 27 de Outubro de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Acabara de ver a exposição “Imagens da Alegria”, brinquedos e pinturas do DIM, no Centro Cultural do Abolição. Que maravilha! Tantas cores! Tanto sentido de festa! Quanta explosão de ludicidade! Uma mostra dessas deveria estar permanentemente lotada. Mas parece que não é com a gente. Seguia pensando a respeito dessa dissociação que temos de nós mesmos quando encontrei grupos e mais grupos de pessoas militando nas ruas por um Brasil diferente, em oposição à continuidade de um modelo com validade de presunção vencida. Nada é mais forte do que o desejo quando ele vem por si, em aspirações da coletividade, sem induções verticais exteriores.

Assimiladas instantaneamente lado a lado, essas duas situações produziram em mim uma química reflexiva residual da atual campanha política. A eleição é hoje e as urnas hão de confirmar o que parece decidido pela maioria. O uso indevido de armas psicológicas felizmente não atingiu o alvo. As tentativas de produção do pânico coletivo reverteram-se contra os agressores e contribuíram para reforçar as razões da esperança. O momento é de consolidação definitiva da transição democrática. Nasceu da sociedade civil a desconcertante dinâmica em favor de alternativas para uma sociedade cujo bem comum cedeu lugar aos interesses individuais.

A dívida social e cultural brasileira é digna de quitação. Por todo o Brasil jovens inventivos de origem humilde, a exemplo de Antônio Jáder Pereira dos Santos (DIM), jamais deixaram de acreditar nas cores que dão sentido à sua arte e à sua vida. Por isso, merecem governos includentes. Merecem governar. A desigualdade econômica e a exclusão cultural, resultantes da irracionalidade e da injustiça que o alheamento produz, não cabem num país de tantos sonhos expressos na mobilização espontânea que agitou o Brasil por esses dias. Vencer o peso do sistema estabelecido no jogo escorregadio da democracia é o mais duro dos embates porque requer paciência, credencial de propósitos, autoridade política e habilidade para o diálogo.

A atitude coletiva de promoção da alternância de poder, através da revolução pacífica do voto, atesta um certo rompimento com o complexo de inferioridade ainda fortemente arraigado no nosso espírito de colonizado. Está esboçado na cena política brasileira um desejo explícito de que a maioria quer outro tipo de sociedade. Chega de medo, chega de submissão aos especuladores, chega de falsários de aspirações. A esperança é um horizonte. É a força mais expressiva do olhar projetado rumo ao infinito que há dentro de cada um de nós.

A eleição de um presidente que represente a condução dessa esperança necessita, porém, da compreensão de que, logo em seguida, começará a tarefa de colocar o sonho em ação. Esforços individuais e coletivos. O maior desafio brasileiro é cultural. A percepção do próprio valor é uma questão de escala na auto-estima quando se quer fazer frente ao que não interessa e está arraigado em nossas vidas. O estrago neoliberal passou dos limites. Quem acredita no país nunca deixou de querer um Estado regulador e responsável no trato do nosso patrimônio sócio-econômico e, principalmente, no que diz respeito aos cuidados com os bens simbólicos da brasilidade.

A esperança gera cobranças e desejos de recompensas muitas vezes imediatos. Eleger é manifestar o desejo de mudar. Mas passadas as apurações dos sufrágios é preciso continuar engajado para que os sonhos vinguem. Ninguém sozinho, assim como nenhum grupo isolado é capaz de promover o desenvolvimento com distribuição de renda, política de proteção da base produtiva nacional, fortalecimento institucional e inserção soberana do Brasil nas relações geopolíticas, culturais e comerciais com as demais nações do mundo contemporâneo. Fazer valer um novo contrato social, inspirado na pluralidade e no respeito às diferenças, deve ser uma responsabilidade e um compromisso também do eleitor e dos que não votam, mas querem deslocar o eixo de condução do país. A noção compartilhada de rumo reduz a fraqueza da ambigüidade.

Não há o que vacilar. O pior está passando e o melhor e mais animado, embora mais duro, é fazer a metamorfose. Isso exige consciência dos problemas e resignação na determinação de superá-los. A confiança nos líderes escolhidos é fundamental para que eles tenham força nas inúmeras, complexas e necessárias negociações por um Brasil decente. O horizonte da esperança não passa do começo da caminhada. O processo de adaptação de uma nova mentalidade política torna-se muitas vezes longo e exaustivo. Vivemos em um país que merece ser respeitado e justo porque nós devemos nos respeitar e ser solidários. Mais importante do que estar vivo para poder usufruir do resultado das conquistas é ter a felicidade de contribuir para que elas sejam possíveis. Sentindo e pensando o mundo com a simplicidade e a beleza de uma alegre obra do DIM.