Fábula contemporânea
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 11 de Janeiro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Conta uma fábula registrada pelo dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) que somente as pessoas que circulavam pela grande floresta conheciam o rouxinol e seu belo canto. Para a nobreza encastelada, o pássaro não existia, até o dia em que o imperador tomou conhecimento de um livro, no qual o canto do rouxinol era considerado a maior maravilha do império, mais elogiado do que o seu palácio de porcelana. Depois de conseguir a cooperação do rouxinol para cantar também no palácio, ofereceu até gaiola de ouro para tê-lo só para si. Para ele, não valia a pena ser imperador se a maior preciosidade do império podia ser apreciada por qualquer um. O ministro chegou a ordenar que quem ouvisse o canto do rouxinol seria enforcado. Foi preciso que o silêncio constrangido do pássaro e a morbidez nostálgica do imperador, de tantas lágrimas, desaguassem na compreensão de que o segredo do rouxinol é cantar para quem quiser ouvir.

No universo da nossa música infantil de qualidade, a história de Bia Bedran confunde-se em parte com a do rouxinol da fábula de Andersen. Multiplicando seu canto em discos, fitas, programas na televisão pública, teatros e palcos de rua, ela ousou não aceitar muitas ofertas tentadoras de mídia nobre para não perder o direito de cantar com vida para quem quer realmente ouvir. Sua postura de respeito à infância não combina com a erotização precoce e a glamourização da violência, provocada pelo marketing da fusão de gostos, como se criança fosse miniatura de adulto. Essa realidade inconseqüente é bem mais cômoda aos pais e à sociedade, embora esteja liqüidando com a infância e gerando seres incapazes de sonhar. Roubados do senso lúdico, meninos e meninas sofrem os efeitos de grosseiros clichês de comunicação e tudo soa falso nesse submundo supostamente fashion e certamente vazio.

O espetáculo “Dona Árvore” é composto de pequenas e leves histórias e músicas que falam de valores e virtudes que resistem à corrosão do tempo. Com melodias, ritmos e letras envolventes Bia Bedran, acompanhada da filha Julieta e por uma banda, contam e cantam sentimentos valiosos para a formação e elevação do espírito infantil. Arte, poesia e desejo de um mundo saudável, percorrem cada nota, cada passo, cada fala e cada canto. Não conheço ainda a montagem, mas tenho escutado o CD com freqüência. Tem sido comum pegar minha mente em festa com a sonoridade que embala a história do pato injuriado, do canto do pedreiro, a necessidade do ar puro, o samba da gíria, flor de maracujá e outras faixas que sintonizo pelo agradável e voluntário canal da lembrança. Acompanho o trabalho da Bia há muitos anos e admiro a coerência da sua proposta artística.

Num país de simbiontes televisivos, onde tudo está ficando alourado e o poder de consumo passou a ser a medida de todas as coisas, só continua cantando na mata quem é rouxinol de verdade. Felizmente não se pode observar os fatos na sua totalidade, porque o simples ato de olhar alguma coisa é o suficiente para modificar as suas condições. Inspirado nesse conceito, recuso-me a perder a esperança. Artistas como Bia Bedran reforçam a confiança de que nem tudo o que enche as telas de tevê e as capas dos cadernos escolares significa a estética definitiva da nossa produção artística e o gosto terminal da arte brasileira. Pensando bem, o hiperbolismo dos novos personagens sem autores, sem alma e feitos por publicitários sob o influxo passageiro das pesquisas de mercado, tende a tropeçar na própria labirintite do seu exagero.

Mais dia, menos dia, descobriremos que não vale a pena matar a fantasia, como o imperador da fábula de Andersen respeitou a liberdade do rouxinol em nome da própria sobrevivência. A exposição das crianças ao ridículo é uma aberração cujo limite está no vazio, que, assim, as crianças levam dentro de si mesmas para a idade adulta. Sem as atenções afetivas de aceitação, amor e compreensão de que a infância é outra coisa, tornam-se gratuitamente hostis, ansiosas sem motivo e sentem-se abandonadas, sem lugar para voltar. A racionalização da infância, com base na tabuada econômica, é um abuso, uma negligência social de resultados imprevisíveis. A dívida desse mau-trato pode custar uma tremenda morbidez tediosa, como a que acometeu o imperador que não aceitava dividir o canto do rouxinol com as pessoas ditas comuns.

Algum motivo especial prende artistas como Bia Bedran à idéia de que é na floresta que o canto do rouxinol tem valor, cantando para quem passar. Talvez seja o aposto da emoção essencial que a arte verdadeira celebra e multiplica. Da sua casa em Niterói, onde pode escutar as ondas do mar quebrando sob o terraço e apreciar os encantos da Baía da Guanabara, a autora de “Dona Árvore” vai espalhando poesia com gosto de infância por onde viaja. Quem quer ouvir? Quem se dispõe a ver a montagem dessa fábula contemporânea? Só há um pormenor: não existem ônibus fretados tangendo crianças para lotar estádio, nem sorteios, nem mentiras. Quando um rouxinol canta é para quem quer ouvir, para quem vai ao seu encontro por conta própria, por vontade própria e com as próprias pernas.