Gratidão a Rubem Alves
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 30 de julho de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Quando há cerca de cinco anos notei que o pensador mineiro Rubem Alves (1933 – 2014) começara a se despedir da sua aventura entre os que chamamos de vivos, mesmo sabendo do tanto que ele ainda tinha a nos oferecer, procurei um jeito de ser solidário à sua atitude de organizar a finalização dos capítulos da sua vida e obra, para partir tranquilo. Além de expressar a ele minha gratidão ao que ele fez por mim, escrevi, então, um artigo no qual revelo a minha inclinação para gostar de quem, como ele, lê a vida amando.

Em resposta a esse texto, intitulado “A sintaxe da lembrança” (DN, 2/4/2009), no qual estabeleço algumas associações e diferenças entre ele e o escritor português José Saramago (1922 – 2010), que foi um cético diante do encantamento, Rubem Alves reagiu com palavras de simplicidade: “Você me pôs ao lado do Saramago! É demais para mim”. Esse tipo de humildade, facilmente identificada na sua grandeza, contribuiu para que me tornasse um admirador confesso desse grande educador brasileiro.

Razões particulares para ser grato ao professor Rubem Alves não me faltam. Dez anos atrás, o procurei para que fizesse o prefácio do meu livro-CD “Benedito Bacurau – o pássaro que não nasceu de um ovo” (Cortez, 2005). Expliquei que estava precisando de apoio para fazer circular aqueles escritos um tanto estranhos no conteúdo e na forma de tratar a literatura infantojuvenil, e ele, generosa e prontamente, fez uma linda apresentação.

Mais do que abonar o livro de alguém que não conhecia, Rubem Alves passou a ser um estimulador do meu trabalho e do meu esforço de levar às crianças e jovens uma literatura fora de modismos editoriais. Lembro-me do susto que tomei no dia em que ele me telefonou para dizer que havia recebido o livro “Fortaleza – de dunas andantes a cidade banhada de sol” (Cortez, 2005). Enquanto, de um lado, eu chorava de contentamento, ele, do outro, me dizia ao telefone: “É assim que se ensina história; criando vontade no leitor de saber mais”.

E, nas graças dessa solicitude, ano após ano, livro após livro, ele ia me animando a seguir fazendo o que faço, do modo que faço. Na ocasião em que fizemos o show de lançamento do livro-CD “A casa do meu melhor amigo” (Cortez, 2010) no auditório do Museu de Arte Moderna, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, ele não pôde ir, mas me passou um correio eletrônico: “Que lindo tema! Que linda capa! Que o lançamento seja uma experiência de felicidade!”.

No lançamento do ensaio-memorial “Toinzinho e Socorro – uma intensa e fervorosa flor” (Plural de Cultura, 2011), no qual homenageio meus pais, comentei com ele que o evento seria na antiga estação de trem de Independência, no sertão dos Inhamuns, lugar onde nasci e onde vivem o meu pai e a minha mãe. E, claro, enviei um exemplar do livro para ele; no que recebi mais uma amorosa motivação: “Delícia pura. Me sinto completamente em casa no seu mundo de bules, árvores e carneiros”.

Na terça-feira, dia 01/11/2011, Rubem Alves publicou sua última crônica, “Despedida”, no caderno “Cotidiano”, da Folha de São Paulo. Lançara mão de versos do poeta português Fernando Pessoa (1888 – 1935), “Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo”, para dizer que, se há um cansaço das coisas, “a velhice é o tempo do cansaço”, dos anos que pesam, e que ele assumia essa condição. Naquela fala, ele admite publicamente a desativação dos compromissos formais, em nome da proximidade do adeus.

Enquanto o seu corpo se debilitava, Rubem Alves seguia pessoando, com “a frescura na face” dos que não precisam mais cumprir deveres. Passou a curtir com mais intensidade o que ele chamava de “cacos de memórias”. E foi contando histórias, compartilhando reflexões, sem querer finalizar nada; não teria mais tempo para isso. O que dava vontade de dizer ia dizendo, passando para frente o que lhe chegava à mente, com a convicção de que todo mundo se interessa por histórias e que ele tinha muitas para contar.

Na travessia para a partida, Rubem Alves voltou-se ainda mais para a harmonia da natureza. Em uma das mensagens que dele recebi, ele dizia que passara a meditar olhando para o gato, aquele ser deitado ao lado do aquecedor, entregue ao calor do momento, sem a perturbação de qualquer desejo. “Estou velho e quero que me seja dado o privilégio de me entregar à filosofia do meu gato: fazer nada”. Ele comentava a preguiça do gato como a virtude de um ser em paz com a vida: “Quero simplesmente ter a saúde de corpo e de alma que tem o meu gato”.

Por conta dessa atenção especial de Rubem Alves aos gatos, relatei-lhe de um velório encantador ao qual tive a oportunidade de apreciar os gatos da Zivó – uma amiga que falecera com mais de cem anos – se despedindo dela. Eles ronronavam pela sala da casa, passando o rabo pelo caixão, em carícia de adeus; sabiam que não mais a veriam. Ele amou essa história; e foi dessa história que recordei no momento que soube da sua partida. Olhei para o céu e as nuvens, em forma de gato, não me deixaram dúvidas de que ele agora faz parte do azul do firmamento.