Inspirado Papete e o som do Maranhão
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Terça-feira, 28 de Outubro de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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No texto de apresentação do disco, o pesquisador, músico e diretor-artístico da gravadora CPC-Umes, Marcus Vinícius de Andrade, conta do entusiasmo que compartilhou com Marcus Pereira e Leda de Hermilo ao chegar em São Luís, na segunda metade dos anos 80, para um encontro com os compositores e os cantares do Maranhão. Em Jambo Papete oferece uma compilação de como recebeu os convivas há 25 anos num desfile de toadas de bumba-boi, entre sotaques de matracas, viola, orquestra e pandeirão. Nessa espécie de bobó musical acompanha uma canção com azeite de samba e refogados de reggae na auspiciosa radiola a céu aberto da terra de São José de Ribamar.

Um disco é bom quando tem sinceridade em seu conteúdo e quando consegue ir além de si mesmo levando o recado dos ventos buliçosos. Papete, que é um dos mais reconhecidos, renomados, respeitados e premiados percussionistas do mundo, tem toda uma vida dedicada à difusão da música maranhense de raiz. Trata-se de uma mistura de compromisso, convicção e paixão. Sob a proteção do elemento identitário da cor ele revela em Jambo uma enunciação política da essencialidade de sua diferenciação como efeito de linguagem a fim de despertar as metáforas de um país multi-ancestral. Tambores e dores madrugando no peito de quem chora de luz ao romper da aurora que sempre vem.

Ao escutar a obra de Papete salta em mim um tanto inestimável a bela contribuição do Maranhão para a música brasileira. Lembro de João do Vale, o Garrincha da MPB. Lembro do rádio no interior tocando Alcione nas alturas. Lembro de reouvir Tânia Maria, que deixou São Luís para se tornar em Nova Iorque uma grande diva do jazz. Lembro de Anna Torres, que casou no início deste mês com o produtor francês Mario Sconidu e, mesmo antes de jogar o buquê de rosas amarelas, havia conquistado espaço de intérprete revelação do zouk na França. Lembro da Tribo de Jah. Lembro da performance artística ainda pouco explorada de Rita Ribeiro e lembro da ascensão de Zeca Baleiro.

Êh, Maranhão, que coisa linda! Passa Zé Pereira Godão com a fábula do Boizinho Barrica e seu romance sideral com a Estrela Dalva, que os habitantes da mata chamam de Tainahakã. Passa o Sonho de Catirina, na controversa ópera popular de Chico Maranhão estendendo o palco do teatro Arthur Azevedo às mais ousadas alegorias do boi. Passa, passa e passa a adorável Rosa Reis jogando caxangá. A bandeira de Jambo é perfumada, por isso tem o dom de evocar imagens que a gente guarda do Maranhão sem necessariamente depender dos sons que estão gravados no disco. É o resultado de quem trabalha com a fragrância de um lugar, de uma gente, seus quereres e seus prazeres.

Perto e longe do seu próprio valor enquanto expressão artístico-cultural a obra de Papete faz da saudade um feito sem pranto do se encontrar e um jeito sem espanto de se mandar. Como o novelo imaginário de Josias Sobrinho, usado para tecer um caminho com rumo voltado para dentro e aberto para o mundo na sua dimensão mais escancarada e errante. Josias estava no pólo magnético do LP Bandeira de Aço e continua indispensável na catálise do CD Jambo. Por sinal, ele vinha há anos afastado dos palcos, mas retornou no mês passado a se apresentar em peregrinações pelo interior do Maranhão, arrebanhando parceiros (que ele chama de cabroeiras) numa espécie de Coluna Prestes da cultura.

A participação vocal da cantora Anna Torres e do guitarrista e cantor Fauzi Beydoun, da Tribo de Jah, nas faixas de Jambo, ilustram a tempo presente a marcha da Bandeira de Aço em sua travessia pelo campo minado da música brasileira. Se Marcus Pereira fosse vivo estaria dando vivas ao novo disco de Papete e à gravadora CPC-Umes conduzida pelo incansável Marcus Vinícius de Andrade. Não é à toa que o disco é dedicado “ao inesquecível Marcus Pereira (…) amigo de fé e ideais, pois sem o seu incentivo no início da minha caminhada jamais eu teria a possibilidade de sequer acreditar que seria possível engajar-me nessa árdua missão de registrar e divulgar a música da minha terra, o Maranhão, contra tudo e quase todos”.

Papete está inspirado. Tanto que no último ano vem escrevendo um livro com histórias e mais histórias do que viu, viveu, experimentou ou concebeu a partir dos períodos em que ficava na janela da cozinha da casa onde foi criado. Uma janela através da qual pôde capturar segredos do céu e aguçar a curiosidade sobre o destino dos passeantes. Uma janela que ele considera responsável pela vontade que um dia teve de ser músico, de sair pelo mundo, conhecer pessoas, ampliar os espaços de experimentações da vida e conectar tudo com a vida familiar, a infância e a adolescência. De ligar arraial com estação orbital na espiral dinâmica da memória de tudo o que fica guardado por significar crença, prazer e aprendizado constante.