Por toda a vida eles tiveram o mar como quintal e sempre foram visitados pela lua cheia que nasce dourada, resplandecendo as águas e os ares da poesia. Com este pano de fundo, o palco do multitudinário e agitado bairro do Pirambu inspirou o belo pop-rock Estabanada Lua (Jon Soares / João Pirambu), em que o infinito interior de seus autores é refletido na paisagem.

Assim como o espetáculo da lua dourada, muitos acontecimentos naturais e sociais daquele recanto de Fortaleza levaram João Pirambu e Jon Soares a fazerem parcerias que beiram três décadas. Dessa produção foi montado o repertório de Munganga Navi (Radiadora, 2025), um álbum e um livreto com 13 músicas, das quais seis foram compostas com a participação de terceiros.

O título veio de longe. Munganga, que significa ‘trejeito’, é uma palavra do quicongo, língua bantu centro-africana e norte-angolana que aportou no Ceará Negro; e Navi sugere navegar, andar embarcado. Ambas avistadas de longe e ouvidas de perto nesse álbum disponível nas plataformas de música digital.

A parte impressa, com 60 páginas grampeadas tipo canoa, traz as letras, contextualizações das composições e comentários de poetas e artistas da cena independente. Esse conteúdo, incluindo vídeos com as letras, também pode ser acessado por dispositivos móveis através de QR Codes presentes no material.

O caráter raiz do Pirambu sustenta a emocionalidade da obra. Em Perfumaria (João Pirambu), escuta-se o aroma do amanhecer e a promessa de ter sempre a janela aberta a cada manhã: “Nunca mais acordei depois do sol”. Na letra de Perfume (Jon Soares e João Pirambu), as telas ardentes do pintor Chico da Silva (1910 – 1985) exalam o cheiro naïf das cores. “Ouvir Perfume é revisitar pertencimentos imemoriais do bucólico Pirambu”, diz o escritor José Augusto Moita.

João Pirambu e Jon Soares / TVDD

A meninice que segue solta no palco do teatro de afetividades e brincadeiras desse bairro litorâneo e suas múltiplas possibilidades imaginativas está em Léo (João Pirambu): “Lembra que você dizia que o que mais queria / era entrar num sonho e se perder”. O cineasta Nirton Venâncio realçou essa aventura de fuga para o lugar ideal, como uma “certeza de que foi, e se não foi, pode-se tentar sempre”, uma maneira de assegurar a “esperança que alicerçamos diariamente”.

O tema da negritude aparece em “Negro, Negro” (Jon Soares), um ska de afirmação sobre o qual o compositor Fernando Neri se irmana: “Basta-nos talvez a nós, rebentos das bordas desse tempo, este recorte, pois é a partir dele e do que nele ocorria ou ocorreu que nos iniciamos na tentativa de compreender melhor o que significamos ou insignificamos”. Nesta música, o autor recorre à física quântica para idealizar uma festa planetária onde haja equilíbrio da luz aos corpos humanos de todas as cores.

Em Nação Pirambu (João Pirambu / Jon Soares), eles se autodeclaram. Jon tem pele preta e João tem pele branca, mas os dois são irmãos de batuque e de vida: “Sou a negra cor, negro maracatu / negro eu / negro tu”. O poeta Oswald Barroso (1947 – 2024) comenta em versos essa fraternidade negra: “Ostentando seu negrume / Sob o lume da lanterna / Trajados de saia e sunga / Segue Jon, segue João!”.

O álbum Munganga Navi está ancorado em integrações orgânicas de belezas moduladas por experiências plásticas e acústicas, ao som de mar, ao som de ar, som da vida dura e do amar. É bom lembrar que a lua dourada da praia do Pirambu tem a força de agitar amizades, parcerias e ações coletivas nos campos do real e do utópico.

 

Fonte:
Jornal O POVO