Memórias falantes de cruzes e credos
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 12 de Novembro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Li o livro “Micróbrios na cruz”, da jornalista e historiadora Márcia Camargos, em um vôo entre São Paulo e Fortaleza, com parada de uma noite no Rio de Janeiro. Foi como se a protagonista estivesse sentada na cadeira ao lado falando, falando, sem me dar a menor chance de dizer alguma coisa. Ainda nas primeiras páginas fiz uma interrupção para dar minhas primeiras impressões do livro a uma senhora que na realidade estava sentada ao meu lado e tinha achado o título curioso. A Dona Ivone vinha de Beirute. Tinha ido visitar a terra dos pais e ficar mais por dentro do cadastramento para dupla nacionalidade de descendentes de libaneses que está para ser votado no Congresso daquele belo país. Como os poderes políticos no Líbano estão repartidos pelo peso das religiões e atualmente a maioria é muçulmana, há toda uma movimentação no sentido de ampliar os votos dos cristãos.

O que eu poderia dizer à Dona Ivone sobre aquelas primeiras páginas? Havia percebido a importância do olfato como baliza nas relações da protagonista. Perfume de mãe cheirosa, cheiro acre-ocre do tio que fuma cigarro de palha e a náusea da mistura de aromas diferentes. A narrativa, palmilhada em costumes inspirados na pedagogia da negação, já anunciara a personagem como uma sobrevivente no labirinto conceitual das desigualdades, da indiferença, do nojo, do pesadelo, da inveja e do vômito como expressão simbólica de um passado opressor. Para mães sempre ocupadas, cansadas, exaustas e pais ausentes, criança é sempre um problema. O pior é que a Dona Ivone estava mesmo curiosa em saber o significado de “micróbios na cruz” e eu imaginava alguma coisa, mas também não passava de um curioso até aquele momento.

Contei que o livro tratava do desenrolar da visão de mundo de uma menina criada na gangorra familiar de oscilantes expectativas sociais, modeladas na química do jogo de preconceitos da década de 1960. Por ser um trabalho calcado na oralidade, disse que estava achando interessante as aspas estarem implícitas por toda parte. Sentia logo nos primeiros capítulos o desabafo típico da crônica psicológica. Talvez não tanto quanto a mente perturbada da prosa de Edgar Allan Poe (1809 – 1849). O fatalismo em Poe se dá no âmbito da alucinação e dos cenários brumosos, enquanto que na obra de Márcia Camargos, a sensação de irrealismo é colhida na falta de ar da realidade hipocrômica. Ambos, porém recorrem à estética da oralidade com ornamentações mórbidas.

Pelos dizeres das páginas que tinha lido, até iniciar a conversa com a Dona Ivone, já dava para entender que “micróbios na cruz” definia-se mais para o plano das autobiografias ficcionais. A autora escolhera a personagem Formiguinha para, por trás dela e de si mesma, brincar de esconde-esconde nos corredores da memória. Entretanto, essa vontade de falar do que marcou, do que se tem de escarlate para contar, não chega ao relato nu e cru de Herbert de Souza (1935 – 1997) para o jornalista Ricardo Gontijo, que gerou o livro “Sem vergonha da utopia” (Vozes). Betinho, como ficou conhecido o sociólogo militante, narra o drama de um menino hemofílico, criado entre uma penitenciária e uma funerária, que teve tuberculose na adolescência e que precisou derrotar a morte diariamente, por ter adquirido o vírus da Aids em uma transfusão de sangue, no tempo em que colocava em ação os muitos sonhos do seu País.

A Formiguinha não diz que nasceu para o desastre, embora com sorte, como afirmava Betinho. Mas é disso que ela trata com irreverente elegância literária. Os dois guardam em comum, além de serem mineiros, uma certa ironia com os entraves da vida e o fato de exporem largadamente suas aventuras individuais em forma de metáfora coletiva. Por conta dessa abrangência alcançada pelo livro de Márcia Camargos pudemos, Dona Ivone e eu, estender nossos comentários sobre religiosidade. Conversamos sobre a humanidade, suas crenças, exageros e perspectivas. Ela, mais tendente a esperar por uma saída especialmente divina, e eu, mais afeito a pensar num Deus mais próximo da natureza e da capacidade de superação humana. No aeroporto Tom Jobim, dividimos proporcionalmente a corrida do táxi para Copacabana e Ipanema.

No dia seguinte fiz todo o trecho do Rio de Janeiro para Fortaleza escutando o tagarelar da Formiguinha. Página por página ela foi mostrando o seu diário da infância e da adolescência entre Minas Gerais e São Paulo, como um Saramago café-com-leite. Há um quê de adulto nas ilações da menina, mas como realce de assimilações. Uma alegoria da angústia e do sentimento de culpa, provocada pelos exageros dos dogmas. Apesar de aflita, a personagem não é amargurada, o que a tornou uma agradável companheira de viagem. Tudo é contado com fartos detalhes de marcas de produtos que identificam uma época, dos gestos das pessoas e pitorescamente apoiado na recorrente expressão “coitado!”, como um juízo lúdico da antítese do infortúnio.

O livro é pontuado por sentenças regressivas da bulimia compulsiva de uma garota extemporânea, nascida de dez meses e crescida nos limites da intolerância. É dura a circunspeção da inutilidade, o senso de que filho só dá prejuízo em uma vida atordoada pelo jargão moral do pão-durismo de quem nunca foi rico nem “sócio da Light”. Não é à toa que a Formiguinha me fala tanto de cruz do calvário, tontura, castigo, morte por queimadura, assédio sexual, acidentes de carro e das pessoas meio retardadas que a cercam. Cobranças intensas, desprezo e ameaças vitais formam um quadro psicossomático de uma personagem que chega ao ponto de ter inveja da desgraça alheia que é capaz de induzir à compaixão, como na cena da menina cega que entra na igreja sem ver ninguém, mas com a altivez de quem sabe que todos olham para ela.

Quando o relato da Formiguinha entra no teste das verdades na adolescência ela começa a descobrir que os norte-americanos não são os anjos da guarda da humanidade como tinham lhe ensinado e que nem o Pai do céu nem o seu pai da terra carregam todas as respostas. Desconfia que Deus vai fazer das tripas coração para que ela volte a acreditar nele, mesmo sabendo que não vai conseguir. Essa catarse existencial religiosa começa quando a personagem admite a bondade divina, mas reconhece que Deus com um milagrezinho de nada poderia muito bem ter evitado os cravos enferrujados de micróbios e tétano que mataram o seu próprio filho. Olha para mim com ar indignado e diz que se ele fez isso com Jesus, do que não é capaz de fazer com simples mortais. O avião aterrissou em Fortaleza e na poltrona ao lado eu não tinha mais nem a Formiguinha tagarela nem a presença serena da Dona Ivone. Fiquei observando as pessoas saírem com seus cheiros e jeitos de caminhar, como quem observa um mistério que não sei se precisamos entender.