MPB: Música Plural Brasileira
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Quarta-feira, 28 de Abril de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Por trás dos apelos da bundofilia aeróbica, da tautologia axé, do forró bichado, da força da economia breganeja e da pagodização musical brasileira, a nossa diversidade inventiva prossegue, como quem acredita no futuro, sedimentando a sua importância de patrimônio imaterial. O valor social, cultural e comercial do nosso acervo de composições populares merece atenção especial da sociedade. Sem acesso à informação, sem conhecimento do que se produz de bom e bem feito por todo o País, passamos a sofrer de uma certa anorexia estética, tornando-nos presas fáceis para os esquemas caça-níqueis de produtores embusteiros.

Mas a verdade é múltipla e essa crise de valores não vai muito além da vitória parcial de uma versão do neoliberalismo vigente. Precisamos de música para divertimento e lazer, mas precisamos também daquela que nos faz pensar, refletir, sonhar, vaguear por dentro de nós mesmos. Quando Jorge Ben Jor se orgulha de nunca ter feito uma música triste, Gilberto Gil ganha o grammy de world music e a revista Rolling Stone aponta Tom Zé, com 62 anos, como a mais jovem estrela do cenário pop underground, fica difícil de entender essa nossa passividade consumidora.

É no mínimo estranho o fato do Brasil cruzar os limites imaginários do novo milênio com superabundância musical produtiva e uma gente ruminando carência nos currais difusores da indústria fonográfica. As saídas estão por toda parte. Não tem mais aquela dependência obrigatória do Sudeste maravilha. Temos arte para emoção e razão espalhada por todo canto. A nossa maior força está na mixologia que o fenômeno da hibridização revela. Se, como advoga Carlinhos Brown, o mestiço tem vários espíritos, somos uma nação privilegiada nessa trama. O manguezal cibernético de Chico Science, a linguagem neopopular de Antônio Nóbrega, o experimentalismo sarcástico de André Abujamra e seu Karnak, a house music amazônica de Eliakin Rufino, o rasqueado pantaneiro de Helena Meireles, o regionalismo cósmico de Abidoral Jamacaru e a urbanidade nordestinada de Vange Milliet temperam esse caldeirão de almas.

Tão grande e viçoso assim, mas esse arsenal não está na linha de frente do nosso orgulho cotidiano. Faltam sinalizações da nossa intelectualidade cabisbaixa e metida no engano da busca de atenção pelo auto-flagelo. Falta percepção da nossa juventude universitária urbana, cujo coeficiente cultural está próximo de zero. Falta sensatez em alguns artistas viciados em patotas e ancorados em histórias de sucessos anacrônicos. Faltam políticas culturais decentes, capazes de beneficiar o interesse público e não a um ou outro obediente agente laranja. Falta discussão, falta difusão, mas não falta rima, matéria-prima.

Muitas têm sido as tentativas de salientar uma identidade sonora para o Brasil, de forma que possamos despertar da decadência musical que nos consome. Artistas ligados ao movimento negro, pensaram em Música Preta Brasileira, outros andaram defendendo a Música Pop do Brasil, Música Popular Boa etc etc. Nota-se, claramente, que há uma preocupação em manter a sigla MPB, que de tão bem refinada acabou virando gênero. A cantora Joyce foi mais além e andou ensaiando essa distinção com a expressão Música Popular Criativa.

Tenho defendido o conceito de Música Plural Brasileira. Acredito que sendo o nosso maior problema a desatenção para com a riqueza desse patrimônio de recursos renováveis e não poluentes, a melhor forma de emularmos essa percepção é chamar a atenção para a pluralidade. Dificilmente alguém vai querer continuar consumindo mesmice sem qualidade ao descobrir que um dos maiores diferenciais positivos do Brasil é a sua efusiva variedade musical. A reversão desse quadro pede o somatório de esforços de quem acredita que merecemos muito mais do que a mentira ofertada. Itamar Assumpção elucida o teorema lembrando que “porcaria na cultura, tanto bate até que fura”.

Preservando a sigla MPB, honramos os seus criadores que, nos anos 60, concentraram as expressões regionalistas no Sudeste, juntando-as com referências internacionais e lançando nacionalmente, no tempo dos grandes festivais, uma nova cara para a música brasileira. Principalmente aqueles que souberam valorizar tudo o que foi construído de Chiquinha Gonzaga a João Gilberto, passando por Luiz Gonzaga e Cartola. E salve o talento de todos os que seguem contemporâneos sem vender a alma para poder vender discos. Hoje, a diversidade ganha corpo nas várias regiões do País e a tecnologia facilita essa integração. É só a gente querer. Existe uma nova realidade, a da Música Plural Brasileira.