Noturnos de Henrique Torres
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Domingo, 25 de Maio de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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No calçadão da avenida Beira-Mar vultos de passeantes se movimentam como se o vento soprasse auras anônimas povoando as horas vazias da noite. “Bela fantasmagoria”, pensei ao observar uma das fotos em preto e banco expostas por Henrique Torres no Centro Cultural do Banco do Nordeste. Fui seguindo aquela tradução da orla, tentando acompanhar o olhar do autor e procurando sentir o que poderia me dizer o claro-escuro da realidade fugaz aprisionada. Ondas gelatinosas e gelatinadas, claras espumas clareadas sobre negras pedras e pingos riscantes feitos cabelos esvoaçantes de mar.

A fotografia de Henrique Torres diz que as luzes da cidade ainda precisam da lua para que as castanholeiras pareçam albinas e possam ornamentar o encontro da cidade com o mar sem perder a clorofila. É tintura de luz que assanha o coração dos namorados e atiça a poesia dos pescadores. Nesses tempos em que só se consegue ver o que é mostrado à exaustão, ele esbanja paciência ao dissecar a aparentemente frívola paisagem de praia urbana como quem prepara despretensiosos incunábulos. Seu toque gestual e silencioso sugere uma atitude própria das pessoas que alimentam o mundo da arte com discrição e estilo, forjando obras quase anônimas e ao mesmo tempo tão presentes e expressivas nas nuances culturais da vida comunitária.

Ao lançar mão de fontes noturnas de inspiração, o músico, o médico, o pai, o apaixonado, enfim, o fotógrafo capta em intensidades variadas uma ambientação reflexiva para a sua narrativa visual e imersiva do mundo circundante. É este o fenômeno do máximo divisor comum que me empolga nas pessoas dispostas a experimentar a vida em sua plenitude. Um dos males contemporâneos, maior do que a competição pela competição e mais significativo do que a indiferença para com os mais desfavorecidos, é a indisposição para a subjetividade do olhar. E uma sociedade que não sabe ver torna-se vítima da própria cegueira resultante da escuridão que a envolve e inibe a sua visão. O auto-conhecimento só aflora quando se aprende a olhar o que está em volta. Dependemos dessa compreensão externa para existirmos.

Pelo visto, o mundo profissional, de médico anestesista, não tirou de Henrique Torres a liberdade de vagar, de correr atrás do belo e de se expressar. Muita gente não consegue fugir do círculo abafado da sobrevivência devido à busca irrefletida por destaques superficiais no trabalho e em setores específicos da sociedade que o direciona e oprime. Olhei para as fotografias de Henrique Torres com atenção dobrada exatamente por se tratar do resultado da contemplação de alguém que executou aquele trabalho por um prazer pessoal elevado à satisfação transbordante. Estamos na era das comunidades transversais e precisamos ter uma existência, precisamos pertencer a algum lugar, a uma cultura, para podermos nos sentir capazes de migrar entre os múltiplos ambientes comunitários no tempero da nossa fibra social.

Existe ainda um ranço travestido de cobrança em relação a quem extrapola a individualidade e atinge o plano comunitário. Há sempre quem cobre o que não se está oferecendo. O senso comum, marcado pelas manchas do superficialismo, quer logo enquadrar o sujeito para limitá-lo em sua trajetória sensorial expansiva, fazendo com que muitos deixem a busca permanente de lado para assumir a redução do papel que a sociedade reconhece como do indivíduo. Henrique Torres rompe com esse estigma ao arriscar ser visto como adepto da ingenuidade de estar perdendo tempo com o que não interessa ao sucesso de sua carreira como médico, para usufruir da sensibilidade dos seres múltiplos que na verdade somos.

Na condição de flautista (doce e transversal) foi fundador do Syntagma, grupo que na segunda metade dos anos oitenta impactou a cena musical cearense executando peças medievais, renascentistas e barrocas num repertório recheado de cantigas nordestinas de raiz, tocadas com instrumentos da música antiga. Na formação original desse grupo caminharam lado a lado outros nomes expressivos do nosso universo artístico: Angelita Ribeiro, Nara Vasconcelos, Liduíno Pitombeira (o velho Precioso), Valter Freire e a atual secretária de estado da cultura, Cláudia Leitão.

Arranjou as condições para essa espetacular incursão na vida cultural cearense sem negligenciar a medicina, a vida familiar, a relação com os três filhos e, evidentemente, com a sua musa Angelita. Aliás, a intensificação do interesse e da inspiração de Henrique pela fotografia passa também por sua madona. Vem do acompanhamento que fez do trabalho de Socorro Araújo que há alguns anos convidou Angelita para uma sessão de fotos em preto e branco com a finalidade de ilustrar textos do inesquecível poeta e pensador Mário Quintana. Saiu fotografando a mulher e acabou ampliando o foco e descobrindo ângulos e contrastes de Fortaleza.