O adeus aos carteiros
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 7

Terça-feira, 10 de Agosto de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Poucas atividades cumpriram a tarefa de contribuir significativamente para a garantia da invejável unidade brasileira quanto a dos correios. O fervilhar de carteiros embrenhados nas matas, caatingas, pantanais, serras, favelas, bairros chiques e tantos outros recantos deste país, sempre proporcionou a liga da nossa intimidade miscigenada. Personagens anônimos da história não oficial, os carteiros impulsionaram, na base da sola de sapato, a relação à distância entre as pessoas. Amores, saudades, sonhos, encantos, notícias familiares e comunitárias, tudo a punho e tinta, no indispensável exercício da troca de sentimentos verdadeiros da comunicação particular e reservada, sem a hierarquização de emoções.

A dignidade da profissão de carteiro consolidou uma das instituições de maior credibilidade no Brasil. O compromisso da entrega de uma correspondência não se resume ao valor da postagem, mas ao respeito à mensagem nela contida e, principalmente, ao remetente e ao destinatário, independente de condição social. Pena que, diante do transtorno depressivo federal que nos leva ao beco sem saída da demolição do Estado em favor das novas estratégias mundiais de saque, pareçamos incapazes de reconhecer esse valor basilar e, mais uma vez,  tendamos a permitir o êxito da insaciabilidade mercantil, cujo lema é faturar o ontem, pouco importando para esse negócio de país, gente, cultura e outros entraves à sua fúria gananciosa.

A ordem do dia determina que um carteiro não vale sequer o selo da carta que entrega, nem as pessoas comuns merecem mais do que o seu poder de consumo. Qualquer sentido consuetudinário, antropocêntrico, ecológico, divino, cidadão e de respeito à multiplicidade da vida, está fora dos planos e interesses vigentes. A visão, a audição, gosto, tato e olfato da riqueza mudou de estoque para posse de interligações, de produção para especulação, e os valores de troca e de uso ultrapassaram os limites da ética. Para os agentes da teoria e prática do mercado-acima-de-tudo, a humanidade deve desejar o que as organizações de maior poder econômico apresentam como apropriado para a felicidade, como se  o desejo pudesse necessariamente estar diretamente ligado ao poder de consumo.

Dentro dessa lógica insana, mais um patrimônio brasileiro caminha para o abatedouro. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, ECT, com endividamento zero, está prestes a receber aporte de capital privado e a mudar a razão social para Correios do Brasil S/A, sem que o governo perca seu controle acionário. Nome bonito e operação legítima. Ocorre que o grau de desconfiança construído pela equipe de governo, através da sua política de entrega total do Brasil ao sistema financeiro internacional, é inversamente proporcional  à credibilidade dos correios, que vem do suor de cada um dos seus mais de 80 mil funcionários diretos e mais uns 20 mil indiretos. O anteprojeto da Lei Geral do Sistema Nacional de Correios, conhecido nos gabinetes como nova Lei Postal, assusta pela incerteza do propósito.

Caso seja realmente para aperfeiçoar, atualizar e intensificar as formas de atender à demanda de correspondências em todo o País, essa discussão deveria ser compartilhada com o maior número possível de usuários. Seria bom entender melhor os motivos do estabelecimento de um prazo de cinco a dez anos para o controle dos Correios em relação aos serviços postais essenciais. A dúvida é se a estimativa desse tempo está ligada diretamente ao período necessário para a privatização terminal da empresa. Se for, o cidadão comum, que mora longe e não dá lucro fácil, teria daqui a alguns anos encerrado o seu direito de se corresponder. Alimentar a possibilidade de alcançarmos a esse tão requintado exílio é assumir de vez a nossa impotência social. Está agressivo demais esse projeto de desintegração do Brasil. Não dá mais para suportar tantos desmandos e casualidades.

A idéia da agência virtual dos correios é formidável. A carta chega mais rápido, é entregue dobradinha, dentro de um envelope, e a gente paga com o cartão de crédito ou através dos provedores de internet cadastrados, sem sair de casa. O destinatário recebe tudo direitinho e com sigilo preservado. Mas quem quer transmitir o sentimento que somente é possível com o calor táctil e em carta assinada com letrinha de verdade, a coisa vai ficando mais difícil. A crise gerou uma confusão interna nas agências e, para colocar uma simples carta, tornou-se preciso enfrentar filas e mais filas de gente desesperada apostando a vida em loterias.

A exemplo do que vem acontecendo com bancos, fornecedores de energia elétrica e serviços telefônicos privatizados, para atender as comunidades mais distantes os correios teriam que ser subsidiados pelos cofres públicos. Não tem graça alguma tamanha desfaçatez. Por esse ângulo, a proposta oficial de operação de serviços postais expõe várias saídas interessantes, com as quais combina sustentação econômica da empresa com a promoção de serviços de apoio à população. Além dos serviços essenciais, tais como entrega de carta, cartões postais e telegramas, os Correios regulamentariam a ação de empresas privadas quanto a entrega de encomendas e teria o seu próprio Banco Postal, por meio dos quais garantiria retorno financeiro e poderia exercer o seu papel integrador e fomentador do desenvolvimento nacional.

É neste ponto, onde tem muita grana envolvida, que a reforma estrutural do mercado postal mais tem gerado polêmica. Sem se dar conta ou já trabalhando sorrateiramente para justificar a privatização parcial dos Correios, o governo foi deixando e até estimulando a exploração privada no setor de entregas de encomendas expressas, cartões de crédito, faturas, boletos de cobranças bancárias, marketing direto, entrega domiciliar de publicações, malotes, transportes de cargas e uso da franquia da marca dos Correios. Com a coisa correndo solta, muita gente tomou gosto pela área, principalmente várias multinacionais que operam com remessas pouco investigadas em suas formas e conteúdos. A criação de uma agência controladora dos Correios cadastraria essas empresas e cobraria uma taxa anual pelo trabalho de supervisão e fiscalização das suas operações.

A criação do Banco Postal é imprescindível para a sustentação dos Correios. Munido de um serviço de poupança, conta corrente para a transferência de dinheiro e recebimento de contas de pessoas excluídas do sistema bancário, vislumbra-se uma possibilidade de preservação dessa instituição indispensável ao País. Tudo isso está em aberto e penderá para onde indicar o fluxo e refluxo dos métodos de convencimento nem sempre publicáveis do poder econômico e político. Quanto aos carteiros, tema de filmes, histórias em quadrinhos, desenhos de animação, músicas, pinturas e figuras fundamentais no vaivém de tantos documentos e correspondências históricas entre personalidades, fica a sensação de que a ficção está chegando ao fim e que a realidade deles sempre esteve confundida com a da sociedade anônima que eles ajudaram a dar vida de porta em porta.