O anticlube lírico do Mondubim
Revista Arre Égua – Cultura para todos
Nº 08, págs. 30 e 31, novembro de 2004

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Na rua principal do Mondubim Velho, depois da capelinha de Nossa Senhora da Conceição, uma pequena entrada para tráfego carroçável ladeia os trilhos da via férrea Fortaleza-Baturité e dá acesso ao Mini Museu Firmeza. Não precisa estar muito atento para notar que ali é um lugar incomum. Mangueiras centenárias emolduram a casa alpendrada, ornamentada por orquídeas, roseiras, jasmineiros, manacás e resedás de um jardim de flores cheirosas e de variadas cores. A parede exibe a pintura de um rio visto de cima, refrescando o olhar de quem chega. Os afeitos a uma boa conversa contam com espaço sombreado de areia batida e algumas cadeiras e redes sempre armadas para o exercício do ócio reparador.

O pé de carambola parece que não para de botar. Está permanentemente carregado e pronto para virar saborosos doces de estrelinhas que a Nice adora fazer. Com ele, entram em coro as pitangueiras, seriguelas, cajueiros, goiabeiras, coqueiros, sapotizeiros… O ipê roxo assiste a tudo ao lado de um surrado cata-vento. Um pouco mais afastado o tronco do baobá vai encorpando de tantas fábulas. Pássaros, borboletas e beija-flores são testemunhos do tratamento minucioso dado à tranquilidade no lar dos artistas plásticos Estrigas e Nice Firmeza, que desde 1969 virou museu. Da mostra de reproduções da arte rupestre cearense até a exposição de obras mais recentes, o Mini Museu Firmeza tornou-se a síntese de um tempo de luz e imaginação criadora.

Chico da Silva, Aldemir Martins, Barrica, Barbosa Leite, Vicente Leite, Mário Baratta, Walter Pinto, Descartes Gadêlha, Luben, Aderson Medeiros, Mário Cravo, Mestre Noza, Vitalino, Nêgo… Pinturas e esculturas em aconchego. Como pesquisador e historiador, Estrigas mantém ainda um acervo apreciável de cartazes de exposições de artes plásticas realizadas no Ceará, além de livros e catálogos raros. Em mais de três décadas de existência, aquele lugar recebeu centenas de estudantes, artistas, aficionados em arte e muitos turistas interessados nos nossos mais relevantes conteúdos culturais.

Quem passou pelo sítio-museu de Estrigas e Nice pode dar provas do tanto que é bom poder estar em um lugar onde se pode falar e ser ouvido sem estar sendo medido, cobrado e, principalmente, sem qualquer necessidade de disfarce. Trata-se de uma casa integrada à natureza, sedimentada espontaneamente por seus frequentadores como um ambiente não-hierarquizado de convivência. Sempre tento dar um jeito de valorizar meus sábados e domingos dando uma chegada por lá. Faço isso há vinte e cinco anos. Por esse tempo usufrui de muitas conversas entranháveis com o Barrica, a Hércia, José Fernandes, Zerinha, Arnaldo Vasconcelos, Pachelli, Garcia, Alberto Soeiro, Quintela, Gilmar de Carvalho, Américo, Inês Vasconcelos, Zenon Barreto, Maria Helena e com quem mais chegasse.

Faço questão de levar os amigos que recebo em Fortaleza para uma horinha ao lado do Estrigas e da Nice, no Mondubim. Do economista Paul Singer à embaixatriz Adriana de Médici, passando pelas cantoras Titane e Vange Milliet, é gratificante a expressão de encanto que essas pessoas manifestam ao visitarem o Mini Museu Firmeza. O livro de visitas tem assinaturas de Rubem Braga, Millôr Fernandes, Frederico de Moraes e Isabel Lustosa, entre uma infinidade de rubricas especiais. Toda essa vivência de poesia empírica, praticada no âmbito da apreensão múltipla, agregou valor a essa sociedade anônima de compromisso estético, constituída por cotas existenciais e culturais de participação.

Estrigas e Nice são peças vivas da história das nossas artes plásticas. Atuaram e atuam em cada momento dessa evolução. Carregam em si uma respeitável importância simbólica. Costumo levar meus filhos para brincar no jardim natural e cultural do casal. Admiro a capacidade transformadora que eles imprimiram àquele lugar extraordinário. É ali onde se refugiam artistas plásticos cearenses que não aceitam pintar conforme a onda novidadeira dos curadores dos salões de arte. No Mondubim eles não precisam pintar quadros para tentar agradar às tendências do mercado, pintam sentimentos, emoções. As cores de suas telas podem ganhar assim outros tons e revelar outros dons do caráter subjetivo e fugidio da beleza.

A fúria urbana insiste em enxotar Estrigas e Nice do sítio-museu, com ameaças de obras viárias, imobiliárias e sensação de insegurança, mas a sabedoria dos mais de oitenta anos que cada um deles já viveu revida a esses assédios plantando flores e reunindo amigos para longas e desinteressadas conversas. A disposição permanente para a inventividade e o jeito espirituoso de conduzir a vida passaram a ser os seus escudos cotidianos. Sem contar com a força da serenidade dele e a inquietude dela, dosando o segredo da vitalidade dos dois no avançar dos anos. Observo os hieróglifos dos seus rostos delineando trajetórias, abrindo-se como portfólios de uma relação com o mundo na qual a longevidade é uma feliz consequência.

Sinto-me privilegiado por desfrutar da convivência dessa gente de longa e motivada existência. Pessoas que fazem do ato de viver uma celebração da arte de gozar a vida. No lugar do “doente imaginário” de Molière (1622 – 1673), que tudo fazia para a qualquer pretexto ter um médico a paparicá-lo, Estrigas e Nice exercitam suas conquistas – muitas vezes árduas, como é comum acontecer com os que optam por uma vida livre das pressões sociais –, imprimindo traços e cores a realidades que me encantam por tomarem a idade como atributo da competência do poder revigorante do ser pessoa. Nessa convivência vou me sentindo com mais permissão para amadurecer, para entender que a memória é a vida em sua dimensão mais elementar, passado e futuro no presente aprendiz.

Das conversas com Estrigas, no ritmo da quietude instigada, percebo que, mesmo sendo ele um renomado pintor, com importância também nos campos da pesquisa de arte, da produção de livros e da apresentação de catálogos, seu currículo mais precioso é o da florestação ética da amizade sincera que procurou semear ao longo da vida. Os bate-papos sem dogmas que acontecem no Mondubim varam o dia em discussões sem fim, embaladas pela dança das sombras das árvores ao som da lúdica e estridente passagem do trem. As rodas de amigos que chegam e se vão como se nunca saíssem, preservam as qualidades integrais desse anticlube lírico do Mondubim.

Na roda de afinidades múltiplas da casa-museu, enquanto se fala, aprende-se a dar medida à vida, a observar as constituições do mundo e a valorizar mais o que mais se aproxima da noção de realidade essencial, tendo a arte e o livre arbítrio do artista como instrumento de interferência. É certo que as formas de traduzir e de interpretar o belo avançaram tanto quanto a tecnologia, mas o produto estético não alcançou a mesma valorização. Sobre isso, Estrigas costuma falar da reviravolta nas concepções do belo, dos novos pensamentos e das novas descobertas que vão influenciando o ser humano. Faz isso pela ótica inquieta do artista de sensibilidade especialmente apurada. Para ele, pouco importa a extravagância ou a sobriedade das definições, desde que as pretensões do que seja colocado como arte tenha capacidade de sensibilizar, tenha valor estético.

A velocidade do tempo atual tem levado muitas pessoas a alterar o significado das formas de sentir e de se emocionar. Assuntos desse tipo também perpassam a prosa solta do anticlube. Faz bem divagar se é mesmo a concentração urbana que estimula o rap e a música eletrônica ou se a lua ainda inspira emboladas e serenatas. Estrigas vê no grafite de rua a maior novidade das artes plásticas contemporâneas. Para ele, a vida é um grande e contínuo exercício de adaptação no jogo da sabedoria e da ignorância que, juntas ou separadas, não explicam nada, o que me leva a deduzir que a diversidade de pensamento e de entendimento a respeito do que gerou o universo e do que pode acontecer com o cosmo é tão ampla quanto às formas de sentir o mundo.

No anticlube lírico de Estrigas e Nice, cabem todas as interrogações. Filosofar faz parte do lazer. Contar histórias também. A relação com o silêncio gera associações transversais. A sensibilidade do casal, o temperamento e a expressão pictórica de cada um dão o testemunho em telas que dialogam ao sabor da diferença. Ele, suave, no jogo de tonalidades assemelhadas para não se reabsorverem; ela, berrante, no carrossel de cores da arte naïf. É o discurso do inconsciente montado no cavalete arquetípico da arte, assim como na natureza os bichos, os pássaros e as flores, utilizam-se das cores para seduzir, alertar e, quem sabe, para que a gente possa viver em um mundo mais agradável e alegre.