O dilema do trabalho
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 07 de Setembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Depois que a humanidade instituiu alguns padrões de produção que desconsideraram o relógio biológico, a influência dos astros, a cumplicidade da natureza e o prazer da criação na lida das pessoas, trabalhar passou a constituir um dilema insolúvel, mas necessário à sobrevivência. Verbo intransitivo, trabalhar passou a sofrer as conseqüências da verdade intragável do seu significado, inspirado em um antigo instrumento de tortura, composto de três estacas, cujo nome em latim é tripaliu. Para completar essa maldição, as religiões inventaram a idéia do paraíso, lugar cheio de delícias onde ninguém jamais precisa trabalhar.

O trabalho físico há muito vem sendo substituído pelas máquinas e, num passado mais recente, as novas tecnologias começaram a ocupar espaços organizacionais, descritos pelo sociólogo italiano Domenico de Masi como uma realidade que reserva ao homem o campo do trabalho criativo. Para ele, “a criatividade é a fantasia aliada à realização. Realização sem fantasia gera burocratas e, por sua vocação, os burocratas são sádicos”. Contemplando o problema do trabalho pelo viés desse olhar, percebe-se o quanto a prática do controle administrativo é relativamente fácil e atrelada aos seus próprios limites, enquanto a arte da motivação faz parte da sensibilidade e da liberdade de criar oportunidades.

Trabalhar não se resume a ganhar o pão de cada dia, a pagar as contas do mês e a torcer para o tempo passar e fazer chegar logo a não tão divina aposentadoria. A expectativa da inércia é a morte em qualquer fase da vida. O sistema tradicional de emprego desvirtuou a razão do trabalho. Passou-se a associar o que seria o prazer de trabalhar a salários, carreirismos e, se possível, estabilidade. Gostar do que faz, ter interesse, compromisso e satisfação realizadora deveria ser o ponto de distinção de um profissional. No entanto, não é o que se percebe no anseio da imensa maioria que fica correndo atrás da profissão da vez, sem sequer procurar saber o que isso significa.

É comum observar ainda a corrida popular pelos cursos de informática e de línguas estrangeiras que, teoricamente, preparariam para os desafios da era do conhecimento e da mundialização dos mercados. Parece até que aprendendo a mexer nessas maquininhas fabulosas e falando outros idiomas, de preferência sem sotaque regional, estaríamos mais próximos dos escorregadios empregadores. Que tudo isso vale a pena, óbvio que vale. Mas sem conteúdo, sem capacidade de elaborar um raciocínio lógico elementar e sem horizontes de um novo padrão civilizatório, não passamos de pneus recauchutados nessa prova de radiais. A utilização automática das técnicas e processos de todo o instrumental tecnocientífico existente, apenas em nome do emprego, no contraponto capital e mão-de-obra, envergonha a natureza humana.

A relação com o trabalho, simplesmente pela lente do emprego e do presságio do paraíso na longevidade, gerou resultados desastrosos no cotidiano de todos nós. Nossas opções passaram a nascer pela pressão da carência e não embaladas pelo prazer. Ter um emprego passou a ser mais importante do que trabalhar. Tapeamos muitas vezes o nosso orgulho criador em troca de algumas vantagens de assistência médica e educacional. A empresa, por sua vez, permanece atrelada a um sistema perverso de encargos exorbitantes que inviabilizam políticas compensatórias e de retribuição ao esforço do trabalhador. Da Revolução Industrial, no século XIX, aos dias de hoje, a luta operária reduziu em 50 por cento a jornada básica de trabalho. De 16 caiu para 8 horas. Antes, porém, o trabalho não era medido por horas, mas por tarefas, empreitadas e abusos escravocratas.

Vem a ser cada vez mais embaraçosa a confusão entre emprego e trabalho. Chegamos a inventar empregos para cuidar da questão do desemprego nessa excentricidade mentirosa. Os avanços tecnológicos e de métodos de gestão costumam ser apontados como os culpados pelas estatísticas de desemprego. O paradigma economicista que nos governa vai morrer e não aprende que está mais do que na hora de partir para outros modelos mais adequados à condição humana. Nossas universidades estão à bancarrota e a formação acadêmica tem servido meramente para garantir prisão especial em caso de crime. O gráfico da indústria de certificados e diplomas é inversamente proporcional ao nível de aprendizado de tantos cursinhos intensivos e cursos de extensão.

O certo é que chega a ser deprimente ver um país como o Brasil, tão pujante e cheio de perspectivas, acocorado, humilhado e acossado pelos interesses do sistema financeiro internacional. Queremos produzir, temos conhecimento e matéria-prima abundantes e não podemos porque não temos um projeto de nação. Os canais para quem quer trabalhar estão obstruídos pelos que se mantêm apegados aos decaídos cargos e empregos tradicionais. O medo de perder a vaga, se houver alteração no sistema, corrói o caráter de quem exerce o poder do controle de pessoal, verbas e orçamentos públicos, privados e sindicais, e as vítimas são sempre aqueles que ainda vêem no trabalho um prazer. Quem faz o que gosta renova-se a cada dia, torna-se mais resistente a modismos e tende a ser mais hábil e feliz no trabalho. Isso com certeza incomoda e apavora.

Caso continuemos olhando a crise por esse ponto de vista unidirecional do emprego, a insegurança tenderá a contaminar mais e mais a indiferença da nossa razão solidária. No lugar de comando por competência e ética do cuidado mínimo, continuaremos valorizando os falsos líderes e engolindo a gosma fétida dos bajuladores e oportunistas de plantão. Na vida privada, agridem sadicamente os subordinados, estabelecendo a linha de demarcação que protege suas fragilidades. No mundo público, espalham arrogância sobre os desafortunados, advertindo-os de quem é que manda. Já que o patrão é uma sociedade desinformada, cometem acúmulos e superposições, mantendo vários empregos e fontes de renda, como se tivessem o dom da ubiqüidade. Em ambos os casos, esses privilegiados apoderam-se de tudo o que aparece de positivo e execram supostos culpados por seus atos insanos. Muitas vezes, o pecado do perseguido é simplesmente ser uma pessoa muito querida na organização ou por estar se sobressaindo no que faz.

Existe, contudo, um hiato considerável entre o emprego formal e o desemprego, que é a economia informal. Uma espécie de volta por cima popular em favor da necessidade de criar e de sobreviver. Normalmente quem parte para o trabalho informal, apelando para a própria vocação, tende a acertar o passo. Às vezes, a renda do salário da carteira assinada ou o tipo de serviço do empregado não atende bem sua demanda de cidadão e, nestes casos, surgem atitudes para o complemento financeiro ou de satisfação realizadora. O universo do subemprego múltiplo é animado. Estuda-se para uma coisa e pratica-se outra. Nesse jogo de cintura, tem metalúrgico trabalhando de garçon, engenheiro de gerente de bar, professor de ginástica como vigilante, médico com loja de produtos esotéricos e estudante escapando em recepção de eventos.

Mas não tem pânico, não. Está mais do que na hora de recorrermos aos músculos do nosso velho instinto defensivo e transgressor, que deixamos em alguma fábula perdida na pré-história, para nos ajudar nesse dilema. É só fechar os olhos, encher bem os pulmões de ar e, em fração de segundos, sentir a solidez da gruta mais rústica que a nossa imaginação conseguir desenhar. Inalada toda a coragem e disposição evolutiva dos que nos fizeram chegar até aqui, é só expirar lentamente, deixando os sentidos livres das amarras desse modelo comprovadamente falido. Ao abrir os olhos, veremos o medo desaparecer na imensidão do tempo histórico. O emprego acabou, está na hora de começar a trabalhar.