O melhor da cultura baiana
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 23 de Novembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Com a realização do I Mercado Cultural Latino-Americano, previsto para o período de 9 a 15 de dezembro em Salvador, a Bahia mostra mais uma vez que o segredo do sucesso está no jeito compartilhado de fazer as coisas acontecerem

Os mecanismos promocionais utilizados pela Bahia, para ser vitrine destacada da cultura brasileira, contam com a variedade fecunda de manifestações artísticas e com um patrimônio histórico digno de um lugar que, por dois séculos, foi a capital mantida pela Coroa Portuguesa no Continente. Parece o bastante, mas talvez não fosse tanto, caso não houvesse a cumplicidade baiana pela auto-valorização, pelo olhar ousado em busca permanente de novos horizontes e pela compreensão do fortalecimento cultural, como agitador de oportunidades que beneficiam a maioria. Dessa maneira, as ações dos governos tendem a ser menos tutoriais, aparecendo integradas à capacidade mobilizadora da sociedade.

Ao planejar um evento como o I Mercado Cultural Latino-Americano, o leque de vertentes e organizadores envolvidos garante solidez à execução e sentido amplo que facilita a difusão. A programação, estampa a celebração da herança africana, com música, cinema e dança da África, América Latina e Caribe; a importância da moda na dinâmica cultural; festivais de espetáculos nacionais e internacionais; e uma feira de artes, com palestras e mesas-redondas, envolvendo artistas, produtores de eventos, empresários e promotores culturais do setor público, em busca de cooperação e do reconhecimento da contribuição da nossa cultura mestiça no desenvolvimento da arte contemporânea mundial.

Dá gosto ver tanta disposição e arrojo. Até a universidade consegue sair dos trilhos amorfos do distanciamento intelectual. Foi dos muros da sociologia que surgiu no início desta década a idéia do Percpan (Panorama Percussivo Mundial), evento que desde 1994 reúne anualmente em Salvador músicos, pesquisadores e jornalistas do mundo inteiro para interagir com a cultura local, sob a direção artística de Gilberto Gil e Naná Vasconcelos. O objetivo é mostrar o quanto o som de um tambor pode empolgar e como esse som é produzido por gente de universos distintos. Dos países que já participaram, estão Índia, Hungria, Cuba, Senegal, Japão, Costa do Marfim, Itália e, claro, o Brasil.

Essa capacidade de promover a fermentação de temperos culturais é um dos aspectos mais salutares da vitalidade nordestina que quer mais. A receita está na alquimia, na cebola bem dourada desse bobó picante que leva anualmente à capital baiana um e meio milhão de turistas. Existe até um PIB Cultural, para revelar o impacto dessa atividade na economia do Estado, que gira em torno de cinco por cento. Embora a Bahia não se distinga do restante do País, em termos de pobreza gerada pelo atraso de práticas políticas, se existisse um índice aferidor de alegria popular ela, certamente, estaria no pódio. Não é nenhuma cura, mas é um bom recurso de homeopatia social.

A construção da cidadania baiana passa pelos sons dos tambores, pelo dendê, pela capoeira, pelos telefones públicos em forma de coco verde e berimbau, pela fusão ancestral de Santa Bárbara com Iemanjá, pelas fitinhas do Senhor do Bonfim, pela poesia solar, a preguiça criadora, o agito carnavalesco, a renovação incessante de talentos e o respeito carinhoso pela velha guarda. Passa também pela descoberta da riqueza cultural escondida por força do domínio mercadológico, superdimensionador de banalidades. Não há moleza nessa dinâmica cultural. Mas a capacidade endógena de promover interligações e de sonhar além do que está posto, coloca a Bahia em posição e perspectiva privilegiadas.

A preocupação com o envolvimento dos diversos atores sociais na promoção cultural é visível e diferenciadora. O programa Fazcultura incentiva o trato profissional no setor e vincula o mecanismo obrigatório da contrapartida na participação da iniciativa privada, através da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Com a renúncia fiscal de até cinco por cento do ICMS devido, no limite de oitenta por cento do valor do projeto, ficando os vinte por cento restantes a cargo das empresas patrocinadoras, a Lei da Bahia contribui para o desenvolvimento do processo de gestão compartilhada, propiciando equilíbrio a inspiradas produções.

Essa atitude de facilitar a integração e utilização do maior número de equipamentos disponíveis na sociedade, evitando a concentração limitadora da participação popular, levou o governo baiano a recuperar, em parceria com o Ministério da Cultura, Petrobrás e Eletrobrás, espaços fora da sua estrutura. O exemplo está nos teatros Gamboa, Senac Pelourinho, Vila Velha e outros que fazem de Salvador um dos mais bem equipados pólos culturais brasileiros. São movimentações que, agregadas a realizações de eventos mais comuns nos calendários das grandes capitais, tais como feiras de livros, música e dança, garantem a participação das comunidades no momento de criar e de usufruir dos seus bens materiais e imateriais.

*Artigo publicado com o título “Cultura baiana”.