Olha pro céu, meu amor
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Domingo, 13 de Junho de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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As festas juninas chegaram com as caravelas do velho mundo e ganharam corpo por ocasião das colheitas agrícolas e interesses paroquiais. Iluminados pela fartura, pelo amor e pelo calor das fogueiras, aprendemos a cultivar esses instantes de graça coletiva. Com o tempo, essas manifestações modificaram-se ao sabor do vigor cênico do espírito popular. As coisas mudaram, o mundo mudou e cada comunidade criou o seu modelo de quermesse, cada grupo um tema escolhido para as competições de quadrilhas.

Com a falência da nossa economia rural, essa cultura de chitão, mescla, calibaque e bordados alegres aportou na periferia das grandes cidades, reproduzindo os costumes do seu ambiente gerador. Ficou um restinho também arquejando pelo sertão. Essa expressão popular, embora verossímil, não está contemplada nos ornamentos luxuosos do desenvolvimento moderno. Para os defensores do progresso medido por crescimento de PIB, isso é coisa do passado, é coisa de pobre molambudo. Falar de regional, hasteamento de bandeira, rainha do milho, disputa entre os partidos azul e encarnado, queima de fogos, bandeirolas, leilão, fogueira e banda de música, para alguns déspotas esclarecidos, é asneira desmedida e acinte ao seu inquestionável fetiche primeiro-mundista.

Fogos, bandeirolas coloridas, gente se divertindo, amando e sonhando passaram a ser vistos quase como uma forma de desperdício social. Mão-de-obra que se preza tem mais é que estar ligada em não perder o emprego e ocupada em descobrir como manter o escorregadio status de consumidora. Quem tem talento para esse negócio de festa pode até ser aproveitado entretendo turista em hotel, shopping center e na beira-mar, entre cordões de isolamento e camarotes bem negociados. Os pressupostos observados nas entrelinhas das ações ligadas ao fortalecimento do nosso turismo e cultura, parecem preparar a cidade mais para os visitantes do que para os que nela habitam. E não há erro estratégico maior do que esse.

Carecemos de um planejamento orientado para a fermentação interna. Produzindo cultura e respirando cultura a ponto de nos sentirmos felizes nesse exercício, poderemos ter futuro, inclusive como destino turístico, além de contribuir para a redefinição do nosso lugar no mapa cultural do Brasil. Neste aspecto, desdenhar da força dos festivais de quadrilhas e sua fantástica mobilização nos bairros de Fortaleza, na sua região metropolitana e na interligação com alguns municípios, é um atestado de ignorância político-cultural.

Se com todo o abandono, desrespeito e omissão dos poderes públicos, econômicos, sindicais e acadêmicos, essa gente continua ralando para fazer a festa, é porque tem de fato um grande descompasso no ar. Não bastam as esmolinhas que determinados órgãos liberam, muitas vezes ainda sob as viciadas indicações de vereadores e deputados. As quadrilhas (de brincantes, diga-se de passagem) precisam sair dessa prisão filantrópica e eleitoreira. Esse modelo de crescimento quem-for-podre-que-se-quebre só iguala a periferia nas estatísticas de desemprego, pobreza e violência.

Com um pouco de humildade, um pouco de recurso e um pouco de tolerância, nossos governantes poderiam dinamizar esses festivais de quadrilhas juninas a ponto de se tornarem referência importante nas nossas desejadas políticas de equilíbrio social. O respeito às manifestações autênticas da sociedade, a descentralização das ações culturais, a geração de renda local e o estímulo ao convívio familiar e comunitário, são atitudes necessárias ao bem-estar coletivo e, conseqüentemente, à determinação de um processo de desenvolvimento. A valorização da festa no bairro é imprescindível para a retroalimentação cultural. Daí, para o turista desejar acompanhar os ensaios ou para os maiores destaques desfilarem em quadrilhódromos ou coisa que o valha, é outra história.

Este mês, até grandes corporações multinacionais instaladas no Brasil, como a Nestlé, estão patrocinando festas juninas em todo o Nordeste. É o chamado ataque praça a praça, a busca do consumidor onde ele circula em massa. Nossas quadrilhas também não contam com esse tipo de apoio, simplesmente porque nós mesmos não nos damos importância, não nos reconhecemos, nem soltamos balões para dizer que estamos vivos. É uma pena ser tão escasso o que ficou do apelo de José Fernandes e Luiz Gonzaga na nossa cabeça de olhar raso. E parecia tão simples: olhar pro céu numa noite de São João e ver como é lindo. “Anavantú”! (1)

(1) expressão derivada do francês en avant tout (“todos pra frente”) utilizada na condução das danças de quadrilhas juninas