Papai Noel atropelou Jesus
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Terça-feira, 09 de Dezembro de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Na condição de inspirador da religião mais influente da história, Jesus tem o repertório de sua vida permeado em nossas vidas. Ocupa lugar de destaque nas oferendas do sincretismo brasileiro. No dia da festa do seu aniversário de nascimento o país participa de uma intensa movimentação planetária que tem na imagem do Papai Noel a simbologia mais acentuada das comemorações. A significação do “bom velhinho” parece não depender de quem olha. Por mais distantes e distintas que sejam as nossas regiões, a imagem de Noel é reconhecida pelos desejos comuns que desperta nas pessoas.

Neve, trenó, renas, pinheiros e lareiras passaram a metaforicamente nos avisar que era do hemisfério norte, das terras frias, que vinha a nossa esperança de ganhar presente de Natal. Para uma gente cuja cidadania se reduzia a formulações semânticas abdicamos da nossa realidade para assumir a representação do universo do boneco de roupa vermelha e branca. Chegamos ao cúmulo de colocar tufos de algodão em nossas árvores de natal para confessar na prática a aceitação do encanto. E olhe que Jesus nasceu nas plagas desérticas da Palestina e São Nicolau, o precursor do Papai Noel, tinha raízes nos solos áridos da chamada Ásia Menor.

Nicolau, como uma figura carismática destacada pelo exercício da solidariedade, foi elevado a bispo e a símbolo do cuidado com o próximo nos períodos natalinos. Servia de reforço ao sentido de fraternidade e de generosidade pregados por Jesus. Ganhou versões culturas afora. Mas foi na primeira metade do século passado que a inteligência publicitária da Coca-Cola iniciou a homogeneização da imagem do Papai Noel. Ainda com argumento baseado no princípio de comunhão propagado por Jesus, mas com a intenção de vender refrigerante. Os holofotes do Natal foram voltados para o coadjuvante, dando brilho ao consumo e ofuscando a razão de ser da festa de Jesus.

A indução para a saciedade do imediato resultou na inclinação ao esquecimento do que é mais duradouro, enquanto o ato de esquecer tendeu a ganhar durabilidade em nossas vidas. Nessa troca do essencial pelo supérfluo, as comemorações natalinas dos últimos setenta anos passaram a ser motivadas pela força consumista do Papai Noel da Coca-Cola e seus seguidores. Com o agravamento da atual crise do fundamentalismo de mercado uma reflexão poderá vir a ganhar espaço nas comemorações de Natal: a interpretação de que se o que está em vigor foi capaz de alterar o passado, nada impede que no futuro alguma consciência nos leve a alterar as razões presentes das festas natalinas.

Papai Noel ou Papai do Céu? Quem vai colocar secretamente o presente embaixo da cama das crianças nos natais que virão? A fantasia é indispensável. Como será exercitada, somente a memória do que há de vir poderá responder. Talvez por isso não consiga lembrar agora, ainda que anteveja um outro semblante que não o do Jesus de olhos azuis, pele clara e nariz afilado retratado nas pinturas européias, insistentemente difundido pelo cinema norte-americano e pelos vendedores ambulantes de imagens.

O jogo do simbólico é a maior arma de provocação do desejo. Para que a imagem da sua mascote pegasse, o fabricante norte-americano da mais globalizada das bebidas investiu ininterruptamente de 1931 a 1964 na veiculação em todo o mundo da figura do seu Papai Noel na última capa da revista National Geographic. O senso comum tratou de continuar o trabalho voluntário de merchandising lar a lar, festa a festa, Natal a Natal.

Com o slogan “O Natal é para todos – Essa é a real”, a Coca-Cola recorre ao poder do seu boneco para vender refrigerante rotulado de “espírito de união”. No Natal deste ano a novidade é um Papai Noel de brinquedo puxando um carrinho cheio de garrafinhas de Coca-Cola para dar aos brinquedos que serão abandonados pelas crianças que ganharão novos brinquedos. Tem um quê de Toy Story (Disney/Pixar), filme de John Lasseter lançado em 1995, que rapidamente conquistou espaço no primeiro time dos filmes adorados pela meninada.

O novo comercial do boneco da Coca-Cola causou atrito com a indústria de brinquedos que sentiu a ameaça do Papai Noel tomar a preferência dos consumidores na compra de presentes e a questão foi parar na justiça. O que é normal no mundo dos negócios. Estranho é perceber que o fato do Papai Noel ter atropelado Jesus tenha ficado por isso mesmo. Talvez os pisca-piscas das árvores de Natal guardem sem saber a lembrança da noite estrelada do nascimento de Jesus e alguns presentes ainda levem a sabedoria da dádiva dos Reis Magos.