Acabo de realizar um desejo antigo: oferecer às crianças de Fortaleza uma música com a qual elas possam cantar a cidade, independentemente da condição social, étnica, cultural, educacional, econômica ou da divisão de moradia e maneira de viver de cada uma; e que também seja uma canção que desperte meninas e meninos para se sentirem parte de uma vida urbana comum.

Desde 2005, quando publiquei o livro “Fortaleza – de dunas andantes a cidade banhada de sol” (Cortez Editora), em que, vestida com ilustrações de Valber Benevides, a cidade conta a própria história para as crianças, que eu tinha vontade de fazer a música-tema dessa narrativa. Esse querer era embalado também pelo fato de meus dois filhos terem nascido e passado a infância em Fortaleza.

Demorou, mas chegou o tempo de cumprir o esperado; e o single já está disponível nas plataformas de serviços de música digital, com interpretação de Mallu Viturino, banda formada por Gustavo Portela, Rami Freitas, Plínio Câmara e Samuel Furtado e participação de crianças do coro infantil do Colégio Santa Cecília regido pelo maestro Tiago Nogueira.

Por meio da literatura revelei a muitas crianças que elas podem ouvir o que a cidade fala a todo instante e em todo lugar; com a música, que tem o mesmo título do livro, espero contribuir para o diálogo da infância cantante com a cidade ressoante, uma inspirando a outra em participação ativa na trama simbólica da vida urbana. Antevejo essa cantiga funcionando como ponto de identificação e de vínculos da infância em seus diferentes contextos.

O que me anima a pensar assim é a intuição de quem constrói um brinquedo para dar de presente e pensa logo na criança se divertindo. A música e o livro “Fortaleza – de dunas andantes a cidade banhada de sol” têm esse quê: a música como brinquedo imaterial e a história enquanto brincadeira que se desenvolve no tempo. Senti essa força quando saí pela cidade com as crianças do coro para a gravação do videoclipe dirigido e editado por Helton Vilar.

Mallu Viturino e crianças do coro que participou das gravações da música “Fortaleza – de dunas andantes a cidade banhada de sol”, de Flávio Paiva, no estúdio Varanda Criativa, regidas por Tiago Nogueira. Foto de Helton Vilar, em 20/06/2022.

A partilha da escuta e da voz enriquece mutuamente a infância e a cidade. Se, por meio de experimentações lúdicas, a criança aprende a ouvir o que o lugar onde mora tem a lhe dizer, isso gera enraizamento e crescimento do espírito de concidadania. De modo igual, cantar a cidade e para ela, seja em ambientes privados ou públicos, provoca o espaço urbano a perceber mais as suas crianças.

Dos 2,7 milhões de habitantes de Fortaleza, cerca de 560 mil têm até 14 anos, tomando como base estimativas recentes do IBGE. Algumas dessas crianças podem ser vistas pontualmente nos sinais de trânsito, em algumas praças, na praia, nos poucos parques, nas areninhas de futebol e em fotografia de outdoor; mas onde estão todas as outras? O que podem ter em comum no contexto vivencial das áreas centrais e periféricas?

Nas duas últimas décadas, o livro “Fortaleza – de dunas andantes a cidade banhada de sol” tem sido acolhido por escolas das redes municipal e particular de ensino, presentes em diversos bairros e municípios da Região Metropolitana de Fortaleza. Alegra-me acompanhar a ação de educadoras e educadores nessa circulação da voz da cidade contando particularidades de sua história em realidades tanto diversas quanto desiguais.

Agora boa parte da cidade também poderá escutar vozes da infância, a partir de referências cantadas de histórias comuns que sugerem outros e mais outros enredos, ampliando a sensação de cidadania cultural, pertencimento e aceitação integral da criança no espaço urbano e no tempo presente. Sem a criança cidadã não há sociedade cidadã.

Veja o videoclipe: