Pedagogia da menoridade
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 19 de Março de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Sempre fui atraído pela prática social da educação no seu aspecto multirreferencial. A aprendizagem não limitada à docência, mas a todo um conjunto de influências acometidas pelas especificidades do fenômeno educativo. Todos e por toda a vida somos educadores e educandos. Talvez por isso, a Pedagogia, que é a ciência que estuda os hábitos educacionais e faz da movimentação do conhecimento um exercício profissional transformador, tenha tanta dificuldade de organizar formalmente os seus conceitos. Fiquei refletindo sobre esse assunto depois de uma fala sobre Sustentabilidade Social que fiz há poucos dias na Academia de Polícia Edgar Facó, para uma turma de tenentes-coronéis de sete estados da Federação, dentro da programação do Curso Superior de Polícia (CSP).

Cresceu em mim a convicção do tanto que temos de responsabilidade comum no nosso processo educativo. O diálogo entre pessoas e instituições que assumem diferentes, mas interdependentes funções sociais, em busca de compreensão do sentido público nas suas mais variadas dimensões, costuma render sinais positivos de humanização. A demonstração de interesse daqueles comandantes militares de aprofundar o debate me alcançou além da sala de aula. Recebi várias correspondências com opiniões e questionamentos a respeito dos pontos abordados no nosso debate, o que me levou a realçar a crença no empenho de cada um deles em compreender melhor as novas nuanças do papel da Polícia Militar ante os desafios contemporâneos.

Como serviço público essencial e de alta complexidade operacional, a polícia tem sido um dos alvos preferidos do descrédito que recaí sobre as nossas instituições. E a busca de saídas capazes de influenciar na superação dessa crise de confiança é um assunto que interessa a toda a sociedade. De tanto assimilarmos o estigma de que a corporação policial não passa de um simples aparelho de repressão popular a serviço de quem controla o Estado, perdemos a noção da importância social da sua difícil tarefa de garantir a segurança pública. Movidos pelo preconceito mútuo acabamos promovemos um indesejável afastamento recíproco entre os mundos civil e militar, perdendo conseqüentemente a oportunidade de aprender a buscar, juntos, soluções coletivas para os problemas crescentes da violência em nosso País.

Esse distanciamento que nos enfraquece a todos passa pela necessidade de amadurecimento do nosso processo educativo ainda refém de uma atávica pedagogia da menoridade. Encontrei tais preocupações nas mensagens dos tenentes-coronéis que solicitavam a minha opinião sobre os motivos da educação não estar conseguindo preparar os estudantes para terem uma consciência crítica do mundo a fim de se tornarem profissionais com maioridade plena. Na nossa conversa eu tinha abordado a questão da menoridade dentro da angulação trabalhada pelo filósofo prussiano Immanuel Kant (1724 – 1804). Em linhas gerais ele caracterizava uma pessoa menor, não com base na idade, mas pela incapacidade dela se servir do entendimento sem a orientação de terceiros. E ia mais longe quando chamava de “menoridade por culpa própria” o fato de muita gente não colocar em prática a consciência que tem das coisas simplesmente por indecisão e por falta de coragem de agir conforme a sinceridade da sua compreensão.

Temos um problema renitente, que nos faz recuar diante do desprendimento da menoridade, que é o fato do nosso processo educacional ter desembarcado nas caravelas com os colonizadores. A nossa educação não fluiu de desejos e de necessidades culturais dos povos aqui miscigenados. Pelo contrário, recebemos deliberadamente uma educação de tutela que tinha como missão fundar uma cultura da dependência. Com todas as dificuldades encontradas, a incumbência assumida pelos jesuítas desenrolou-se em um projeto vencedor. Tão vencedor que séculos depois ainda não conseguimos nos libertar da mentalidade de colonizado. Essa mentalidade se evidencia no fastio que temos de nos prover bem do nosso próprio entendimento e pelas tentativas de procurar apenas reproduzir o que não somos.

Existe uma sensação de que é muito cômodo ser menor, simplesmente por se tratar de uma condição que dispensa o esforço próprio. Acontece que viver é algo bem mais considerável do que a conquista da satisfação das necessidades cotidianas reais e das induzidas pelas exigências artificiais do consumismo. Chamou a minha atenção o comentário de um dos profissionais da segurança pública, participantes do CSP, que salientou na questão da menoridade a propaganda das empresas financiadoras da cultura inútil da celebridade e a apologia ao mercado de armas. Lembro que nesse momento da discussão fizera referência contundente ao desserviço que os holofotes de muitos programas de televisão, ancorados na espetacularização da violência, prestam à imagem da polícia. E, infelizmente, muitos policiais parecem encantados com esse suposto brilho de heróica casualidade.

Na sua ânsia sensacionalista esse tipo de programa eleva o policial ao patamar de estrela do escatológico, debilitando a sua autoridade com o disparo simulado do festim da fama. E a celebridade, no entendimento do psicanalista Jurandir Freire Costa, é programada para idolatrar o momentâneo e com ele desaparecer. “Quem vai respeitar uma autoridade fútil, irresponsável e efêmera? Ninguém”. Existe um aprendizado a ser cultivado nessa relação da mídia com a polícia. Claro que tudo isso passa por uma evolução da consciência do telespectador que, por sua vez, depende de avanços no nosso processo educativo como um todo. A moral da aparência está contida no composto da pedagogia da menoridade, por onde se transmitem as ondas da ausência de limites e da felicidade agora.