Por uma versão do Ceará profundo
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 06 de Julho de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Embora sugerindo melhor aproveitamento das vantagens comparativas do turismo no Ceará, o que supostamente viria a reforçar a nossa produção artístico-cultural, o estudo do Banco Mundial serve bem para clarificar o insuspeito desajuste entre o seu modelo concentrador de crescimento e o interesse em conhecer e propagar as nossas aptidões sociais mais legítimas. Sem uma atenção muitíssimo especial ao que realmente nos distingue enquanto sociedade, qualquer indústria de entretenimento e lazer fomentada de cima pra baixo corre o sério risco de ser uma falácia a longo prazo, causando prejuízos imprevisíveis.

O principal ponto de apoio para qualquer desenvolvimento consistente é, sem dúvida, a cultura. Na seqüência histórica da revolução industrial e da revolução francesa, boa parte da Europa iluminista conseguiu aterrissar de tanta reviravolta, recolhendo na cultura popular a base simbólica para a construção do seu futuro. Foi alto o investimento para remontar seus valores mais íntimos de percepção da vida, preservados na oralidade das pessoas. Causos atribuídos ao escravo grego Esopo, fábulas do francês La Fontaine, releituras, também francesas, de Perraut, contos dos irmãos germânicos Grimm e as histórias fantásticas do dinamarquês Andersen, são alguns dos registros mais consagrados por esse período.

Sem símbolos que ocupem papel importante na sua imaginação, um povo não se reconhece, tem dificuldade de saber para onde vai e ainda vira presa fácil para a exploração da sua honestidade e capacidade de luta. Talvez, confiado nessa fragilidade, o estudo do Banco Mundial insista que um dos nossos principais ativos para o crescimento econômico seja “uma grande força de trabalho com salários baixos pelos padrões brasileiros”. O texto defende melhoria na educação, no sentido de qualificação de mão-de-obra. O aperfeiçoamento das qualidades físicas e de conhecimento, para a integração participativa das pessoas na vida social e política do País, parece estar além da conta.

O dito “estudo” é, na verdade, parte do receituário alopático a que o Brasil vem se submetendo cegamente, sem dar muita atenção aos efeitos colaterais que debilitam o nosso organismo cultural. Estamos vivendo em função desses procedimentos. Um exemplo claro dessa dependência é a proliferação de planos diretores nos nossos mais diversos municípios. Em um primeiro momento, é de se pensar que essas comunidades amadureceram e passaram a desejar um melhor ordenamento do futuro urbanístico das suas respectivas cidades. Quão bom seria se assim fosse. Infelizmente, toda essa onda de código de postura municipal não passa de uma exigência do Banco Mundial na hora de liberar recursos para projetos e outras delongas mais. Cidadania que nada, quem não tiver feito o dever de casa perde a matrícula. É a máxima da merenda escolar, segundo a qual só ganha “ração” quem for à escola preencher ponto nas estatísticas.

Guardo comigo, como quem guarda uma saudade boa, a edição de um livrinho de aulas de canto orfeônico, para as quarta séries do Curso Ginasial, datada de 1959, ano em que nasci. Na apresentação, a autora Judith Almeida oferece seu trabalho “aos Exmos. Professôres e aos distintos Alunos dos nossos colégios”. Essas deferências arrepiam qualquer alma que ainda não se entregou ao apelos da lei do Mister M e seu decreto de morte da ilusão. Professor era Excelência e aluno um ser tratado com distinção e respeito. Privados desses laços de consideração, não passamos realmente de base cálculo para estudos macroeconômicos.

Surpreendentemente, e deve para isso ter lá suas razões que a nossa razão desconhece, o documento admite as distorções geradas pelas políticas de atração de indústrias com base em um sistema de incentivos concentrador de renda. Para proposições inspiradas na velha idéia de que é preciso crescer o bolo para poder dividir e que acusa a pobreza rural como a raiz dos nossos problemas, sem qualquer avaliação dos motivos que ampliaram esse empobrecimento, a crítica ao “milagre” cearense de atração de indústrias é bastante curiosa. Dizer que o algodão acabou por causa de uma praga de bicudos, se não for uma metáfora, é quase zombar da nossa decantada inteligência.

Por sua natureza de ciência que cuida da dinâmica da produção, distribuição, consumo e acúmulo de bens materiais, a economia é muito limitada para determinar os rumos de uma sociedade. Como seria um estudo da nossa geografia humana, do nosso caráter antropológico, longe do olhar preconceituoso e dos interesses em manter estigmas corrosivos? Que sociedade o nosso espírito comercial, criativo, poético, habilidoso e trabalhador gostaria de construir? Que valores escondemos por vergonha de não parecerem modernos? Que choro de liberdade engolimos por medo de expor nossas crenças, por temor de sermos alvos da fúria ancestral que apagou nossa memória?

Pagaria para ver um documento de avaliação e recomendações acerca do nosso patrimônio imaterial. Nossa visão de futuro tirada do Ceará profundo, como água cristalina de um rio cultural subterrâneo, em pleno sertão; tal qual água doce bem filtrada e puxada a poucos metros da superfície da areia da praia ou de uma fonte jorrante da nossa mais úmida serra cercada de devastação por todos os lados. Ah, como seria refrescante e engrandecedor esse banho de realidade! Por enquanto, tentamos escapar do dilúvio neoliberal que afoga quem não for peixe. O badalado crítico cultural francês, Pierre Lévy, tem advogado que não existe cultura norte-americana, que aquele povo só pensa em vender. “É como o McDonalds. É neutra”. Ora, mas que semelhança com a ajuda amiga do Banco Mundial! Com certeza merecemos muito mais, merecemos a nossa própria versão.