Jornalismo expressionista
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 23 de Abril de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Diante da abundância de informações que circulam pelos mais diversos meios, o jornalismo tem procurado inovações técnicas e estilísticas para a superação do fastio do leitor. O que muitos vêem como impasse eu prefiro ver como oportunidade de adequação das características intrínsecas de cada meio às novas necessidades surgidas entre o tempo real e a realidade objetiva.

Os esforços de conquista da relevância, da indexação e da confiança passam pela busca de alternativas para escapar das sombras da velocidade, do desprendimento dos fatos hegemônicos, da notícia pronta, dos drops e da agenda articulada. Tenho me esforçado para contribuir com esse processo, procurado exercitar o que chamo de jornalismo expressionista.

Expressionismo é a denominação de uma mudança comportamental de cunho estético que caracterizou a arte na passagem do século XIX para o século XX, quando pintores e escritores holandeses, russos, húngaros, austríacos, tchecos e alemães reprocessaram valores em busca da restauração da plenitude humana. Significa um tipo de arte cujas formas não nascem diretamente da realidade observada, mas da subjetividade.

Ao me referir a esse assunto na fala que fiz em um painel do XII Encontro Nacional de Professores de Jornalismo, realizado na sexta-feira passada, na Faculdade Pitágoras, em Belo Horizonte, tentei explicar que no jornalismo expressionista o texto não nasce diretamente do fato, mas da conjunção das circunstâncias que o envolvem. Como o tema era infância, mídia e consumo, ilustrei o meu relato com exemplos de como tomo a notícia para servir de base do que surge de essencial no cotidiano.

Se ao invés de apenas ver, o expressionista contempla de maneira quase literária, o discurso expressionista prefere a interpretação simbólica dos acontecimentos, como uma crônica que desmaterizaliza a rotina para jogar luzes utópicas sobre os seus fragmentos. Prioriza a manifestação emocionada, a existência, com impressões que vêm de dentro para fora e não de fora para dentro. Sua fonte de inspiração é a dimensão social e natural das pessoas.

Assim, como o expressionismo nas artes, o jornalismo expressionista não é um estilo, mas uma direção impulsionadora de dúvidas, que segue o múltiplo e serve de referência ao leitor em qualquer meio de comunicação. É uma alternativa que me parece dar mais naturalidade ao conflito e mais satisfação de vivenciar as contradições culturais, educacionais e políticas, que entram permanentemente em choque na modelagem das convenções sociais.

Na minha exposição em BH recorri à imagem de uma pintura de Van Gogh (1853 – 1890) para dizer que no texto jornalístico expressionista cada palavra deve deixar qualquer coisa a exprimir. Vincent Van Gogh conseguiu ir além dos ciprestes para encontrar os movimentos da luz do sol no trigal e a de lamparina no interior das casas das pequenas vilas atormentadas, que aparecem por trás da silhueta dessas árvores da tristeza, comuns em cemitérios europeus.

Van Gogh era fascinado pelo que podia enxergar de luz na escuridão. Lutava com toda a sua força criativa para isso. Sentia necessidade de imprimir cores à madrugada. Realçava o brilho que a penumbra sempre quer esconder. Valia-se das estrelas e até de velas amarradas ao próprio chapéu para desafiar a noite, para enfrentar a acidez e a aridez do que a realidade aparenta de mais sombrio.

No jornalismo expressionista, assim como na obra de Van Gogh, o obscuro das convulsões sociais aparece como desafio para a busca de iluminação. Tratam-se de noturnos da imprensa, com paisagens, cenas cotidianas, girassóis, semeaduras e manifestações poéticas, quer no campo, quer na cidade. As vibrações das cores em pinceladas paralelas e grossas de tinta, agitando contrastes capazes de tirar variações de um mesmo tema.

A matéria jornalística expressionista deve ser sempre inacabada, a fim de dar chance ao leitor de reagir, de se pronunciar e completá-la com o brilho da sua própria luz. Em sua famosa “Lição” inaugural da cadeira de Semiótica Literária do Colégio de França (7/1/1977), Roland Barthes (1915 – 1980) diz que não precisou recorrer à “autoridade” dos títulos acadêmicos para ser catedrático. O pensador francês optou pela liberdade do ensaio como gênero ambíguo em que a escrita rivaliza com a análise.

É no espaço das tangências que o jornalismo expressionista deve se desenvolver. Penso que o leitor cidadão está desejoso de um mediador que reflita e que abra o seu pensamento para o diálogo. Houve um silêncio no auditório da Faculdade Pitágoras quando eu disse que o jornalismo não tem mais razão para manter a hipocrisia da imparcialidade. Na mesa, a meu lado, o professor e jornalista paranaense, Elson Faxina, reforçou o meu argumento, dizendo que é preciso mesmo que nos posicionemos para poder dialogar.

A profissão de jornalista ocupa-se da relação com muitos saberes. Por isso deve se desenvolver nos interstícios do conhecimento, seja ele de cunho histórico, geográfico, social, técnico, enfim, sempre dizendo que sabe “de alguma coisa” ao invés de dizer que sabe “alguma coisa”. Uma das atitudes que precisamos intensificar no jornalismo é a de superar o trauma de um dia termos tido a pretensão da objetividade.

Felizmente está tudo mudado e tudo mudando. Ressaltei em minha fala aos professores de jornalismo, o quanto me sinto contente ao ver a ciência percebendo-se como processo, reconhecendo que a verdade científica é mutante. Na academia, muitos intelectuais já estão promovendo o pleno diálogo entre as mais diversas áreas do conhecimento, inclusive fora dos muros das universidades. A pequenez de alguns especialistas, ainda aprisionados à ideia de serem donos da voz, está com os dias contados.

A prática do jornalismo expressionista carece dessa impureza também; carece daquele profissional que, como o professor da lição de Barthes, procura “sonhar alto a sua investigação”, sem se submeter a prescrições das fronteiras técnicas, para agregar emoção ao seu trabalho. O mediador que reflexiona é a principal característica dessa forma de fazer comunicação. Na tentativa de experienciar a minha própria teoria, o que mais gosto é da obstinação do espreitador, aquele que está sempre na encruzilhada de todos os discursos.

No jornalismo expressionista a importância do “não saber” e das incertezas devem dar origem ao texto autoral. “Acordar o obscuro que dormia em mim passou a ser o meu ofício”, declara o escritor mineiro Bartolomeu Campos de Queirós em um texto que ganhei de presente da poeta Dagmar Braga. A fala de Queirós, proferida na semana passada em Belo Horizonte, por ocasião de um seminário sobre Políticas de Incentivo à Leitura, guarda muitas chaves para o jornalismo expressionista. A principal delas talvez seja o afastamento do medo de permitir o diálogo entre a escuridão da dúvida e as luzes do compartilhamento.

Bartolomeu Campos de Queirós provoca os que escrevem a ter mais vitalidade e a compreender que ao outro se deve oferecer um outro. A “intimidade silenciosa que habita em nós e no outro” tem seus motivos secretos, por isso precisa de um encontro para que o leitor tenha razões de “descobrir-se na experiência do outro”. O jornalismo expressionista deve reforçar a sua característica de mover-se pela busca de experiências vividas, pelas interrogações silenciosas, pelas fantasias ocultas e não apenas pelos fatos.