Por um momento pensei que neste ano de pandemia não haveria a Festa do Saci. Presencialmente é claro que não convém aglomerar, pelo risco de aumentar a transmissão do vírus da Covid-19. Passar o outubro sem sacizada também não seria respeitoso às crianças que adoram pular, assobiar e zanzar no redemoinho do mais popular dos mitos brasileiros.

O uso das plataformas digitais e das redes sociais torna-se, portanto, uma janela para a paisagem sacizística por onde circulam em uma só perna o envolvimento, a convivência, a alegria e o senso de coletividade. Mães, pais, educadoras e educadores podem fazer a festa com as crianças que amam, usufruindo conjuntamente dos conteúdos disponíveis sobre o saci.

Brincar de encontrar vídeos, livros, histórias em quadrinhos, cartuns, pinturas, causos, brincadeiras e festas em que o saci circula redemoinhando na dimensão digital das telas, mais do que divertido, é uma experiência saltitante. Meninas e meninos sempre adoram a figura traquinas do Pererê e certamente farão com alegria o compartilhamento com outras crianças de suas descobertas.

O isolamento social físico recomendado no combate a essa doença alastrada em escala mundial requer a invenção de atividades com as crianças, de modo que as telas não se tornem meios de domesticação criativa. A Festa do Saci realizada por meio de plataformas de conteúdos e de redes sociais aproxima a infância de uma das boas essências de brasilidade, com melhoria de repertório ante a lamentável ausência de referências culturais no jogo cibernético.

Sacinet do cartunista paulista Jorge Barreto.

Essa brincadeira espontânea de busca pelo saci nos campos livres da arte e da literatura em deslocamentos pelas infovias é estimulante e produz realidade convergente quando os achados são compartilhados entre as crianças. Vale lembrar que o mundo digital é tão real quanto o mundo encantado e que o saci tem copresença e força relacional quando consegue espaço na trama dos signos, onde muitas vezes reina o consumismo.

A brincadeira de procurar saci pela internet não deve ser associada a jogos em que predomina o comando de caça ou de captura a personagens em realidade aumentada. A bem da verdade, a Festa do Saci em sua versão on-line não se confunde com qualquer jogo, simplesmente porque ela é uma brincadeira que diverte e educa.

Para transitar em um redemoinho imaginário, o saci precisa de ventos contrários, precisa de atmosfera e de coextensividade. Daí a necessidade de troca de descobertas e não de apostas, metas e fases a serem vencidas. Na Festa do Saci não há distinção entre quem pode e quem não pode pagar para obter insumos vantajosos e avançar mais do que os outros na competição. Exatamente por não ser um jogo, a sacizada digital, assim como a presencial, dispensa imediatismos e não causa irritabilidade nem induz estados emocionais negativos.

A grande mudança na vida e na personalidade dos indivíduos, trazida pela era digital, é a inversão do sentido narcísico de espelho. A imagem refletida nas telas não é a de quem se olha, mas a de quem quer se mostrar. As crianças precisam de alternativas a essa performance da autoexpressão fantasiosa e de reverência à homogeneidade. Além de tudo, no novo imaginário social existe a sensação de liberdade de escolha, quando predominam as ofertas patrocinadas. Mais um motivo para a meninada exercitar a brincadeira de buscar na Festa do Saci digital.