Como braços de equilibristas
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Sábado, página 5

Sábado, 04 de Junho de 1994 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O poeta Jáder de Carvalho dizia que “a saudade é a companheira dos cearenses”. Como pode essa gente viver acompanhada de um sentimento que traduz ausência, desejo de companhia? No Ceará pode. Há calor para isso. A nossa cultura é marcada pelo ardor, pela busca, pelo olhar distante, pela coragem de andar, perambular por aí e enfrentar desafios. Pela vontade de viver.

Uma gente assim, acaba não se encaixando muito nos modelos desenhados pela história para retratar a conduta dos povos. Esses parâmetros tendem a ser bem comportados, lineares, pré-estabelecidos, como se a dinâmica das sociedades tivesse que se enquadrar sempre em formatações científicas e versões oficiais.

Falar da identidade do cearense é quase um palavrão para quem mede o valor de um povo apenas pela quantidade de prédios históricos existentes em seus centros urbanos. É comum ouvir o argumento de que aqui não dispomos de fartura de monumentos como em outros lugares. Fica uma sensação de vazio, como se não tivéssemos cultura simplesmente porque ela ainda não parece definida e com estágios de evolução clarificados, fáceis de colocar em folder turístico. Tais inteligências, movidas a referências de pedra-e-cal, soterram o que temos de mais rico, por não conseguirem sentir essa riqueza, por não ousarem perceber que o maior patrimônio cultural do Ceará não pode ser visto, tem que se sentido.

Em seu livro “Síntese Histórica da Arte no Ceará”, o artista plástico e pequisador Nilo Firmeza, o Estrigas, mostra que uma das características mais marcantes do nosso povo tem sido, já antes do processo de colonização, o direcionamento da sua sensibilidade estética, não só para a arte utilitária, como teorizam por aí, mas para variadas funções sociais, como a aplicação da arte em cerimônias de guerra e diversão. A ausência de uma vontade de perpetuá-la em edificações ou outras manifestações menos efêmeras, pode ser atribuída à vida nômade, seu principal eixo de atitudes e reações.

A diversificação étnica, com a irrelevante, criminosa e economicamente inviável forma de introdução do negro e a penetração violenta do branco europeu, incorporaram por aqui, entre fortes resistências nativas, muitos elementos culturais peculiares que dão ao cearense um perfil bastante diferenciado, portanto livre da fácil comparação com outras realidades antropologicamente mais bem definidas.

Não é tão fácil compreender essa mestiçagem errante, esse jeito de encarar a vida em zigue-zague, que norteia a nossa gente. Somos caóticos, no sentido quântico da palavra. Nada para nós nos parece mais importante do que viver. Flertamos contumazmente com a existência e isso justifica a nossa capacidade inovadora, criativa e algumas vezes ingênua. Não importa onde ou em que tempo possa acontecer a aventura: se garantindo o Acre para a América do Sul, se ajudando a construir uma capital no Planalto Central ou se esquentando o sangue também do restante da brasileirada, com ritmos em alta temperatura sonora e poética.

É assim que o cearense se faz universal, percebendo ou não esse poder meio abstrato, meio fractal. Por isso é um tanto desarrazoada a exigência isolada dos nossos monumentos visíveis. O “baião” de Humberto Teixeira é um patrimônio cultural tão importante para o Brasil quanto as esculturas do Aleijadinho de Sabará. Mas não dá para fotografar da mesma maneira e poucos de nós temos nos esforçado para descobrir outras formas de valorizar esse potencial.

Continuamos com a nossa sina-sinuca, o nosso vaivém amigado com a solidão. Isso nos torna alegres e nostálgicos ao mesmo tempo. Como os braços dos equilibristas, necessitamos estar em constante movimento para garantir o equilíbrio do corpo e a danação da mente. Dizem que há cearense espalhado por todo o planeta, embora poucos consigam permancer nos lugares onde não é possível ver a linha do horizonte. Contemplar a linha do horizonte é uma questão vital para todo bom cabeça-chata. Queremos ver onde a terra encosta no céu, onde o sol se põe e de que lado vem a primeira claridade do dia.

Talvez no pensamento de cada um de nós a fronteira do Ceará seja qualquer linha do horizonte que dê para ser observada de onde quer que se esteja. Juntamente com cada limite mirado, nasce uma nova curiosidade, um novo desejo que o nosso espírito malino e moleque não perdoa em querer saciar. Assim, a gente vai e volta na gangorra do tempo, passando por tudo que dá ou não para imaginar, para suportar, para transformar em riso, sátira, sonho e, principalmente, para honrar os caprichos da saudade que nos acompanha e nos instiga a lutar pelo direito de não passar em vão pelo mundo, de acontecer como ser humano e todas as implicações que essa condição possa significar.