Mesmo com as tentativas de redução do quadro de violência por meio da descompressão da libido sendo abordadas inclusive no âmbito da saúde pública, o casamento continuou sendo um pacto entre dois homens: o noivo e o pai da noiva. A mulher entrava como moeda para avalizar relações políticas e de negócios. Para o marido, ela tinha também a função de propagadora de genes; e, para a esposa, ele servia para assegurar a sustentação da prole. Nesse jogo, quem sofria era o amor. E, claro, a mulher, que se encontrava na parte desvantajosa dessa situação de assimetria. Em que pese a questão da sexualidade sempre ter sido melhor resolvida nas classes populares e o poder dominante espalhar seu desconsolo com a traição, o feminicídio sempre foi cometido em todas as classes sociais.

Com o alcance parcial de equidade refletido na atuação feminina em cargos antes ocupados apenas ou majoritariamente por homens, mesmo em alguns casos tendo que assumir o estilo masculino como afirmação de competência, a sociedade foi enriquecendo entre a instabilidade das mudanças e a construção de uma nova realidade consensual. Exceções à parte, a atitude da mulher no comando tende a favorecer o igualitarismo e a extensão do poder para o coletivo. Houve ganhos também com a colaboração da parte dos homens que aceitaram compartilhar tarefas como a da maternidade, em uma demonstração objetiva de que existem papeis sociais antes designados apenas à mulher, nos quais cabem muito bem os cuidados masculinos.

O mundo foi conectando-se cada vez mais, os pontos de vista morais foram entrando em alteração e o que poderia ser uma transição cultural mais ou menos equilibrada acabou entrando em uma guerra de estereótipos, pontuada de batalhas ferozes e sem vencedores. Novas racionalidades inquisidoras levaram o caminho de sedimentação do mútuo consentimento a uma transfusão de dogmas mediada por padrões mercantis de beleza, recortes de interesses intelectuais e visibilidades consumíveis. Estabeleceu-se uma agenda social ultrassensível, sublinhada por dilemas de difícil conciliação, a exemplo do direito dos não nascidos e das mães que eventualmente não querem parir filhos de gravidezes indesejadas.

O aumento da intolerância provocada pela fragilidade moral, pelo sentimento de perda de propriedade e pela libido reprimida que levam a boa parte dos casos de feminicídio ganhou proporções mais acentuadas com a democratização do desejo e a liberação de privacidade nos gestos compulsivos das redes virtuais de relacionamentos. Sem a paciência e a coragem de usufruir dos benefícios da alteridade, os autores desse tipo de homicídio não suportam não mais ter o domínio sobre a mulher e reagem com violência extrema. O olhar alheio, o espelho digital e o selfie podem ser associados ao culto a si e à capacidade de impressionar, revolvendo instintos primitivos de imaginação erótica, fantasias de sensualidade e relações de poder. Nessa equação de visibilidade existencial de luta simbólica por presença, reconhecimento e respeito, a mulher é percebida como ameaça a uma virilidade mal resolvida e ainda despreparada para integrar a cultura de paridade humana pela essência sapiens, e não por características biológicas (Final).