Homo sapos urbanos
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Sábado, página 3

Sábado, 02 de Novembro de 1996 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Dizem que um sapo colocado naturalmente numa vasilha com água, em temperatura ambiente, mas em processo de aquecimento, é incapaz de se dar conta de que está sendo cozido até a morte. Faz parte da sua natureza de anfíbio gostar de esquentar o sangue, embora, como qualquer outro animal, sabe-se que lutar pela vida é parte do seu instinto básico. Assim, como a inércia do sapo desta historinha, tenho percebido a apatia das pessoas ante à aceleração do crescimento desordenado dos centros urbanos.

Nosso discreto silêncio denuncia que estamos sendo escaldados enquanto procuramos trocar o deslocamento livre do corpo pela navegação cibernética ou simplesmente tentamos construir uma suposta segurança de ficar em casa protegidos das “epidemias” das ruas. Ninguém quer se arriscar a cair no grupo de risco da violência. A liberdade das calçadas começa a adquirir dimensão de pesadelo porque o excesso de realismo gera a ausência da própria realidade. Basta ver os programas ditos populares que pretendem denunciar a miséria e acabam vulgarizando a violência, transformando-a em entretenimento. Exaltam bandidos e fazem da ação policial um jogo teatral de vaidades, instituindo o glamour da barbárie.

Esta lógica de trocar o olho que vê pelo olho distraído acaba vazando ou saindo por entre dedos, se apertamos bem a mão. Virou natural e vem ganhando o escudo do óbvio, mas ainda é possível perceber o quanto é esquisito viver em uma cidade sem palmilhar seus espaços públicos, sem sentir a canalização dos ventos, o fluxo das pessoas ou sem poder escolher andar na calçada da sombra, do sol, da noite, do dia. Limitar as carícias dos nossos sentidos é pouco sadio para o corpo e para a alma.

É difícil imaginar a suspensão de uma simples ida ao cinema por causa da violência nas ruas. Pode-se até dizer que tem aparelho de televisão com tela do tamanho que o freguês quiser, que os videodiscos são demais, que tudo o que é filme pode ser visto em vídeo, mas, sinto muito, nada disso substitui a cumplicidade e o ritual de ir a uma sala de projeção. O filme escolhido começa em casa. Você toma banho para sair. Sai. Cruza ruas, becos e avenidas. Guarda o carro num estacionamento como se colocasse uma peça num quebra-cabeça vivo. Fila, pipoca, jujuba e os amigos e conhecidos que deixam o cinema pela porta de saída. Não vale contar o final. Deixa que eu compartilhe as emoções simultaneamente com todos os que formamos a platéia. Gosto de sentar um pouco atrás pois, para mim, ver as pessoas reagindo às emoções da tela ou de si mesmas é impagável. Se o filme for bom, então, põe lucro nisso.

A sociedade da violência gratuita e da comunicação em rede subtrai essa proximidade espacial criando um processo de interação virtual baseado na valorização do isolamento e, conseqüentemente, da solidão. Jean Baudrillard, que esteve no Brasil neste mês de novembro de 1999 para uma conferência, revelou que a realidade virtual põe fim ao sonho, expurgando ilusões e desconstruindo o real. Apesar de dizer que o ser humano está perdendo o direito ao futuro, porque passou a consumí-lo antecipadamente, o filósofo francês alivia a tensão dos mais apavorados lembrando a identificação existente entre o perigo e o que salva.

A nossa capacidade de transformação é desconhecida dos nossos anseios, geralmente tão mesquinhos. Há em nós uma liberdade primitiva de superação da adversidade capaz de alterar sentidos, desejos e previsões de sucesso. Nas histórias em quadrinhos, um herói cego chamado Demolidor, detinha a admiração da minha curiosidade infantil por sua capacidade de atuar no mundo orientado por uma aguçada audição. Adolescente, conheci a música de Ray Charles e senti como através dela ele trazia as cores que aos sete anos deixou de ver apenas por ser pobre e negro. Assim, não existe razão para medo ou comodismo de sapo.

Nenhum modelo social é eterno, já que faz parte da gente evoluir. Talvez até sejamos surpreendidos por alguma atitude hibernada nos diretórios da inteligência, para podermos imprimir a nossa chancela no futuro que chega em alta velocidade e, espetacularmente, sem muito freio. Acontece que, como o sapo na água aquecida lentamente, nossa reação tem sido de muita passividade. E a realidade está fervendo. Neste caso, até o sapinho, com seu mais natural instinto de sobrevivência saltaria fora instantaneamente, para ir coaxar em outra lagoa. E nós, por que temos aceitado tantas queimaduras com grito contido? Até quando apelaremos para ungüentos e ataduras na memória e nas relações afetivas com o cotidiano da cidade?

Fortaleza vive um momento de extrema sensibilidade e insegurança de personalidade. Põe um cigarro na boca para mostrar que é madura, mas não convence. Finge que está preparada para o turismo, mas só sabe cair na “miamização” arquitetônica. O designer Paulo Barbosa celebrou essa obsessão como “sincretinismo” local no fenômeno da metropolização. No programa Jô Soares Onze e Meia, o ator Fernando Torres recomendou ao entrevistador que não programasse seus espetáculos para os palcos de Fortaleza, porque aqui as pessoas não gostam de teatro, aqui só se sabe fazer prédios. Verdade dura, de cimento armado.

No complexo de sapo escaldado em que estamos mergulhados, fica difícil acreditar na reformulação das nossas políticas urbanas. A questão vai do atendimento de demandas de serviços públicos essenciais ao fortalecimento e desenvolvimento do potencial cultural da cidade. Estamos sem imaginário urbano. Falta mais conhecimento e difusão da nossa memória individual e coletiva. É facilmente visível a desmaterialização de espacialidades fundamentais à preservação de referências que garantam a Fortaleza horizontes positivos. Se a saída é o ciberespaço, precisamos saber com quantos gigabytes se faz uma jangada, como alerta Gilberto Gil em uma recente composição.

Somos uma capital de migrantes, cheia de provincianismo tacanho por todos os lados. Isso explica a angústia da aparência superposta ao prazer. Não conseguimos ser ainda cidadãos do Grande Circular e nos sentimos em plena era da cidadania virtual. Ligados ao mundo e desligados dos vizinhos. Que sustentação social poderá ter tal comportamento? Se continuarmos assim, acabaremos chegando à indesejável condição de solitários e tristes. Se Fortaleza tem uma vocação para a alegria que é inconfundível, por que não investir mais nessa luz, nesse poder de agregar e construir relações saudáveis de desenvolvimento? Não falo do enfileiramento monocromático dos eventos artificiais, falo da desconstrução espontânea, respaldada por estruturas culturais sérias e consistentes.

Roda, roda, roda e a questão volta para a confusão que vivemos entre o tanto que podemos fazer para termos uma vida melhor e a fuga para o individualismo. Se o fundamental não está no princípio nem no fim, mas na travessia, como deixou refletido Guimarães Rosa, o que estamos fazendo parados enquanto a cidade onde vivemos é destruída pela especulação imobiliária, pela instalação de rotas de tráfico de drogas, crianças e adolescentes prostituídas? Não há motivos para sucumbirmos à toa. Temos o sangue quente, não somos anfíbios.