A chegada da década de 20, deste século 21, pede mudanças na forma de vermos e de nos relacionarmos com o mundo. Está provado que apascentar segregações e desigualdades só aprofunda o caos em que se meteu a humanidade. Os tempos serão melhores se alterarmos esses rumos para encontros com o que a natureza e a cultura proporcionam de inspirador. Exemplo efetivo dessa guinada é a obra recente de Takashi Murakami (Tóquio, 1962), na qual o artista visual japonês mescla traços, movimentos e cores da arte tradicional do seu país com a contemporaneidade de mangás e animes, além de promover a interação das artes oriental e ocidental.

Um conjunto representativo dessa obra compõe a exposição Murakami por Murakami, aberta para visitas, até 15 de março, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. O artista nos impele ao belo mítico, biológico e botânico, entrelaçado a ruínas, desastres naturais e tragédias nucleares, que, em comparação livre com a arte no Ceará, lembra o furor estético do ex-Grupo Fratura Exposta e a alegria dos enfeites de Descartes Gadelha nas cenografias dos maracatus. Faço essa aproximação com base na intensidade alegórica dos dramas sociais, construídos em imagens combinadas de estilhaços de vidros, como nos caleidoscópios.

Murakami criou o conceito de Superflat (Super Plano), um princípio figurativo de justaposição da herança cultural zen-budista e a cultura pop ocidental, para designar a paralelização da sua atividade criativa, que se estende desde a pesquisa histórica até os referenciais audiovisuais digitais das novas mídias. Assim, ficou livre para as mais variadas apropriações. O desenvolvimento dos grandes painéis, esculturas e robô exibidos no Tomie Ohtake contou com o talento de dezenas de artistas integrantes do seu estúdio-empresa em Tóquio, aos quais delega a parte técnica da produção, a fim de alcançar alta qualidade de acabamento.

Por meio do professor de arte clássica japonesa Nobuo Tsuji, autor do livro Kisô no Keifu (Linhagem dos Excêntricos), de 1970, no qual estuda cinco artistas esquecidos da historiografia, entre os quais o iconoclasta Soga Shôhaku (1730 – 1781), Murakami aprofundou-se nas referência para construir o painel “Transcendentes atacando um furacão”, com três metros de altura por dez de largura. De Fujiro Akatsuka (1935 – 2008), pioneiro do mangá, valeu-se da expressão “Sou contra ser a favor” do garoto Bakabon (1967) para desenvolver a irônica tese de que “o significado é insignificante” na arte, desde que ela produza beleza. É que Murakami considera a beleza como um instrumento capaz de, mesmo por um momento, dar realidade à fantasia da igualdade.

A obra de Murakami está pontuada de autorretratos. Logo na primeira sala da exposição no Tomie Ohtake, encontramos o artista devidamente paramentado e sua cabeça aberta, multiplicando olhos que se mexem, na obra “Robô Arhat Murakami” (2015). Arhats são discípulos budistas clarividentes, que alcançaram o nirvana, mas permanecem no mundo disseminando ensinamentos. O autorretrato do artista está presente também em aplicações de ícones pop, como na figura do Mr. Dob (1993), um tipo Mickey Mouse com traços de mangá, considerado seu alter ego. Murakami é isso, um emaranhado de símbolos, plasticidades, cores e seres em propulsão pelo belo.