Passaram-se 25 anos do fim do regime de segregação racial na África do Sul (1948 – 1994), quando o povo negro, liderado por Nelson Mandela (1918 – 2013), recuperou seus direitos civis suprimidos pela minoria de controle britânico no país. No livro “Infância: cenas da vida provinciana” (Companhia das Letras, 2010), o escritor J.M. Coetzee relata curiosas situações da vida dos sul-africanos no momento em que a legislação separatista entrou em vigor, do ponto de vista de uma família africânder, ou seja, originária dos colonizadores holandeses (bôeres).

Em sua ficção autobiográfica, Coetzee, nascido na Cidade do Cabo, conta da sua infância em um conjunto habitacional na cidade de Worcester, no qual as ruas tinham nomes de árvores, mas não tinham árvores. As pessoas se viravam como podiam, o nível de desemprego era elevado, e, o trabalho, reservado aos ingleses e parcialmente aos africânderes. Os negros viviam nas ruas e eram chamados apenas para biscates. Havia pouco contato social e muita dificuldade para quem quisesse ter desejos próprios.

As louras crianças africânderes eram quase como as negras, em termos de marginalidade. Inclusive, faziam tudo para falar inglês, pois assim conseguiam evitar a cabeça raspada e a obrigação de andar descalças. A meninada mestiça estava no mais baixo nível de inferioridade. A educação, restrita e sádica, funcionava à base de surra com vara de bambu. A dor e a vergonha de quem era castigado servia como adestramento à lei do “não deve”: não deve tocar nisso, comer aquilo e nem fazer perguntas.

O garoto Coetzee sentia raiva por não poder ser normal, por viver em uma cultura de fingimentos, na qual precisava manter lealdade secreta ao que admirava. Tinha medo da tristeza da mãe e de que um dia o pai falastrão dirigisse a casa. Não via amor naquela vida, apenas sobrevivência. Via os africânderes como pessoas que sentiam ódio o tempo todo “por terem o coração partido”. E via os ingleses como pessoas que não sentiam ódio porque viviam atrás de muros e sabiam “proteger seus corações” (p.69). E cada criança tinha que declarar uma religião. Ao fazer isso, passava a praticar ritos entediantes.

Como descendente dos primeiros colonizadores, sua família fora dona de uma fazenda, a Voëlfontein (a fonte dos pássaros). Restava pelo menos o direito de contar a história de um lugar onde ainda viviam todos os animais domésticos de seus livros. Era lá que o seu avô estava enterrado. Em uma área sem cercas, sem nomes e sem datas estavam sepultados os negros e os nativos. O autor lembra que, embora não acreditando em espíritos, ao passar entre aqueles túmulos sentia um certo nervosismo. “Da terra sai um silêncio profundo” (p.90).

Mesmo diante daquela triste situação, ele queria ser alguém, mas, para ele, “a África do Sul é um país sem heróis” (p.100). Sonhava em ser um grande homem, e sabia que a única alternativa que teria nesse sentido era se lesse muitos livros. “Deveria ser como Abraham Lincoln ou James Watts, estudando à luz de vela enquanto todo mundo dorme” (p.95). Pensava na Inglaterra de Lancelote, Ricardo Coração de Leão e Robin Hood. Entre os africânderes só via Dirkie Uys, “que cavalgou até seu cavalo morrer” e os Voortrekkers, “que se vingaram fuzilando milhares de zulus desarmados e se orgulhavam disso” (p.118). E foi assumindo o incômodo da sua diferença que J.M.Coetzee se tornou um dos grandes nomes da literatura mundial.