A medalha da terra
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 11 de Novembro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Ao homenagear o cantautor Eugênio Leandro com a Medalha Manoel Veríssimo, por ocasião da passagem dos seus 25 anos, o Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador – Cetra, revolve e aduba o terreno histórico por onde caminha a sua ação em favor da emancipação política, econômica, social e cultural das trabalhadoras e dos trabalhadores rurais cearenses. Manoel Veríssimo, agricultor assassinado em 1986 em plena luta pelo direito a terra, na região de Itapipoca, interior do Ceará, encontra-se nesse momento fecundo com Eugênio Leandro, artista limoeirense, que lançou seu primeiro disco, Além das Frentes, naquele mesmo ano, inspirado nos conflitos e na poética do campo. A comenda será entregue a 25 pessoas, diretamente relacionadas à questão agrária, em solenidade marcada para o próximo dia seis de dezembro, no Kukukaya.

Essa explicitação do reconhecimento da importância da relação entre arte e comunidade, reforça a dimensão transformadora da cultura nas mais adversas situações da nossa geografia humana. Diante dos efeitos seculares das Capitanias Hereditárias, das sesmarias, de mais de 300 anos de escravidão em apenas cinco séculos de Brasil mestiço e da falta de uma reorganização fundiária por uma vida em que o trabalho deixe de ser castigo para produzir felicidade, a música de Eugênio Leandro desconstrói o embrutecimento da alma, canta as pessoas em si mesmas e sintetiza a grandeza dos seus sonhos na figura do agricultor que, em uma de suas cantigas não deixa de plantar flor no verão de manhã, em plena aridez das frentes de serviço.

Depois do Além das Frentes, Eugênio lançou mais três discos autorais, Catavento, A Cor Mais Bonita e Castelo Encantado. Todos enfocando a questão da terra, da água, das paixões e da solidariedade no vai-vem do cotidiano de uma gente que ama, luta e descobre a cada dia que merece um mundo melhor. Dessas quatro obras foram selecionadas dez composições para integrar uma antologia intitulada Terra Feita de Gente, editada com o selo dos 25 anos do Cetra. O CD terá ainda uma faixa inédita, Meu Rio, que entrou na coletânea como uma reverência ao maior rio do Ceará, o Jaguaribe, que banha a cidade de Limoeiro do Norte, onde Eugênio viveu toda a sua infância e adolescência.

A evolução do trabalho de Eugênio se deu em um cenário de adversidades políticas no Ceará. Da mesma forma que a gente do campo enfrentou toda sorte de desigualdades, os artistas que não se renderam ao fundamentalismo de mercado também foram marginalizados pela mentalidade neoliberal forjada pelo governo do Estado nos últimos 20 anos. Enquanto significativa parte dos intelectuais e dos artistas cearenses, inclusive alguns companheiros e parceiros de Eugênio, deixaram-se cooptar pela força chapa-branca, Eugênio optou pelo exílio interno, juntamente com suas crenças e cantos. Manteve-se fiel aos sentimentos que dão sentido à sua música nesses momentos difíceis.

Mais do que um reconhecimento do Cetra por uma obra de grande vigor estético, associada à vida camponesa, a outorga da Medalha Manoel Veríssimo ao cantautor Eugênio Leandro ganha mais valor ainda pela postura de distanciamento do artista diante das tentações quase onipotentes das forças oficiais em uma terra de poucos donos. A escolha de um artista, entre os 25 nomes homenageados com uma comenda referente à questão da terra é um bom sinal no mundo das entidades sociais. É sinal de que assim como as pessoas mais simples, as organizações começam a perceber com mais clareza que o belo, o poético, o sensível, fazem parte da luta e merecem destaque especial por ajudarem a quem precisa plantar flor no verão de manhã.

A luta pela sobrevivência, muitas vezes dramática, tende a empurrar a poesia de lado. Sabe-se que a cultura tem valor, mas dificilmente a atenção às manifestações culturais chega a ser prioridade. A racionalidade parece não dar tempo e espaço à intuição. A arte aparece normalmente nos encontros dos movimentos populares mais como uma lógica do que como um sentimento. Embora não seja isso o que aconteça com as trabalhadoras e com os trabalhadores rurais, que durante o dia calejam as mãos na labuta e à noite tocam viola, contam causos e fazem poemas à lua cheia, como reza a tradição nordestina.

Ao receber a Medalha Manoel Veríssimo, Eugênio recebe um reconhecimento por uma arte que tem cara, coração e, acima de tudo, o princípio ativo da vida no campo, suas belezas, desejos e contradições. Sua obra mescla sensibilidades reais e utópicas. É um trabalho no qual a imagem da gente do campo aparece com estilo, apuro musical e poético. Uma arte-testemunho da vida rural em sua plenitude humana. As composições de Eugênio têm autenticidade na sua tradução do jeito de ser e de amar de homens e mulheres que se confundem em cultura e meio ambiente na ecocivilização nordestina. É uma releitura de música popular refinada, de arte tirada da existência real, dos feitos e desejos das pessoas.

A música de Eugênio Leandro é uma espécie de MPB-Catingueira. É uma música com vertentes de elaboração da sonoridade e da poética popular, onde estão situadas as criações de Elomar, Vital Farias e Geraldo Azevedo. Tem raízes no olhar do menino que brincava nas feiras do interior e acompanhava a produção de cera de carnaúba no Vale do Jaguaribe. Cera que, segundo ele, acabava indo para a RCA Vitor, nos Estados Unidos, onde se fabricavam os velhos LPs (long plays) e retornava na forma de pretos bolachões sulcados para as agulhas das radiolas das emissoras do Vale encherem os sertões de música.

Nesses anos todos de estrada Eugênio Leandro tem espalhado nordestinidade aos quatro ventos. Cantou pelo Brasil de Dentro e o Brasil de Fora. Com o Quart´ETON, ao lado de Tarcísio José de Lima, Olga Ribeiro e Nara Vasconcelos, fez 48 apresentações em sete estados norte-americanos. Viajou fazendo cantoria pela França, Alemanha e Portugal. Apresentou-se em programas como o Som Brasil da TV Globo, fez o BB Cultural com Chico César, no Rio de Janeiro e há pouco tempo foi um dos 24 finalistas do 9º Prêmio Visa – Compositores, entre quase 4 mil inscritos de todo o Brasil. Eugênio é um artista que honra a música cearense e que, com sua arte, contribui para dignificar a vida no campo. Merece colocar no peito a comenda Manoel Veríssimo, a medalha da terra.