Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 17 de Janeiro de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Na teia do debate despertado pelos 200 anos da chegada da família imperial portuguesa ao Brasil um tema muito oportuno a ser aprofundado é o da cristalização do nosso padrão mental forjado na idéia de subordinação. Essa barreira de ambições dificulta que nos vejamos como uma nação de grande importância no planeta em termos culturais, sociais, políticos e ambientais. Impede-nos de admirar mais a nossa inventiva cultura mestiça, a nossa vida social inspirada na emotividade, o processo democrático empírico que temos construído e a nossa participação decisiva nas questões de segurança alimentar e das energias renováveis.

O Brasil foi a única colônia do mundo que se tornou sede do governo colonizador. O ano de 1808 é um marco da nossa história porque a partir da chegada da corte lusitana iniciamos, bem ou mal, a unificação da então colônia, antes um emaranhado de invasões. Se do ponto de vista do passado, temos muito o que saber das versões não oficiais, com relação ao que somos e quisermos ser, temos mais ainda a refletir, quando o assunto transita pelas circunstâncias que nos impingiram alguns complexos de colonizados que freiam o nosso potencial de nação.

O Brasil é uma obra de construção de síntese da humanidade; um lugar de gente desejante, de prática da heterogeneidade e de espontaneidade existencial, que não quer ser hegemônico. É um país maior e mais importante do que a concepção que dele fazemos. O Brasil chegou ao futuro antes do tempo. Quer dizer, antes das nações que planejaram impor o futuro que se limitava aos seus modos de encarar e de modelar o mundo. Hoje, enquanto esses modelos esgotam os recursos de sustentação da natureza e da humanidade, o país é movido a ser uma expectativa de opção civilizatória.

Custou muito caro sermos o que somos; uma sociedade miscigenada, sincrética, com um território em dimensões de mercado comum, falando a mesma língua e uma nação sem inimigos. Pagamos essa condição de grande valor, para os povos que lutam por um mundo mais justo e feliz, com massacres das populações nativas, genocídio das gentes negras, sangue das guerras de conquista colonial, inclusive entre colonizadores holandeses, franceses e portugueses. O legado que recebemos tem origem na aventura de vitoriosos e de derrotados.

Entre as nossas possibilidades e impasses, o que mais nos impede de aperfeiçoar a qualidade dessa herança é a narrativa da inferioridade que teimamos em reproduzir num infindável cotidiano de enfraquecimento da nossa força transformadora. Tivéssemos uma intelectualidade e um conjunto de gestores culturais mais ousados, dentre os quais preponderasse a determinação de descobrir o Brasil que está por trás dos mitos do subdesenvolvimento, já teríamos revertido essa situação e nos colocado mais afirmativamente no debate de redesenho do sentido de destino planetário.

A narrativa da inferioridade começa seu encadeamento na percepção equivocada de que os nativos originários das terras brasileiras viviam sem lei e sem rei. O escravismo reforçou o conceito de que o Brasil não era um lugar para o colonizador e seus descendentes viverem, apenas para explorar. A série de improvisos históricos a que fomos submetidos nos séculos seguintes produziu uma interpretação também errônea de que se tivessem sido os holandeses ou os franceses os vencedores da guerra colonial não estaríamos no estágio atrasado a que fomos relegados. Essas asseverações rotas nos desestimulam a observar as atrocidades que os franceses e os holandeses fizeram em suas colônias.

Nas conversas derivadas da agenda da instalação da corte portuguesa no Brasil tenho escutado a velha lengalenga de que fomos formados por todo tipo de gente que não prestava, especialmente prisioneiros que Portugal se livrava, enviando ao lugar que para eles seria um mundo descoberto. Fico indignado ao ouvir essas afirmações irrefletidas, sem a menor suspeita de que entre os chamados degredados estavam muitas pessoas, cujo crime era o de se opor à política do imperador.

O fato de termos nos tornado um país verdadeiramente mestiço, embora cheio de contradições e desigualdades decorrentes do formato de sociedade modelado na colônia pelo estado português, e não por razões étnicas, ganhou na narrativa da inferioridade a ardileza de que o caldeamento biológico e sociocultural nos tira a chance de fundar uma civilização. A dificuldade para enxergarmos o relevo futurista da nação brasileira põe em seqüência o motor da mentalidade submissa.

Em 1928, o escritor paulista Mário de Andrade (1893 – 1945) faz uma caricatura literária da gestação nacional, ao lançar “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”. O que poderia ter sido um acontecimento propulsor do entendimento da brasilidade, virou por força da narrativa da inferioridade, um símbolo de uma gente descaracterizada, que não tem como dar certo. A leitura da expressão “sem nenhum caráter” passou a ser feita por muitos como mau-caratismo, cinismo e ausência de princípios.

A obra de Andrade mostra, no entanto, que há quase um século o que aparecia folclorizado de interesseiro, preguiçoso e sem coragem para uma vida coletiva, como uma oposição aos valores sociais e culturais positivistas daquele momento, era uma nação que começava a se formar e não estava sendo compreendida, simplesmente por não ter uma consciência tradicional e um sentido civilizatório inspirado em parâmetros conservadores.

No início da década de quarenta, do século passado, Setfan Zweig (1881 – 1942) chamou a atenção do mundo para o potencial brasileiro diante dos desafios planetários que adviriam. Ao declarar que “o Brasil é o país do futuro”, o escritor austríaco nos ofereceu, naquele momento, uma oportunidade de querer saber das nossas virtudes diferenciadoras, mas fomos mais uma vez tomados pela desfaçatez da narrativa da inferioridade e passamos a assimilar esse enunciado como uma simples frase de efeito, enquanto recebíamos nas décadas seguintes uma enxurrada de brasilianistas nos advertindo que não é bem assim.

Fomos classificados no bloco do “Terceiro Mundo”, para onde foram amontoadas todas as nações que não faziam parte dos dois blocos da “guerra fria” liderada de um lado pelos Estados Unidos e do outro pela ex-União Soviética. A narrativa da inferioridade aceitou essa espécie de prisão domiciliar simbólica e o sonho da nação passou o de um dia chegar ao que estava estabelecido como primeiro mundo. Nas últimas décadas a figura do brasilianista foi substituída pela dos técnicos de programas das nações unidas e por muitos brasileiros, da academia e dos movimentos sociais, com bolsas de fundações normalmente vinculadas às grandes corporações internacionais.

Mesmo com tudo isso, o Brasil continua sendo maior do que a expectativa que dele fazemos. A narrativa da inferioridade passou a nos convencer de que precisamos promover a segregação étnica e religiosa para obtermos o atestado de alinhamento histórico com os países que sofreram e sofrem horrores com esse tipo de intolerância social e cultural. No entanto, os programas de distribuição de renda para as classes mais desfavorecidas, do governo federal, têm mostrado que a questão das nossas desigualdades é antes de tudo econômica.

Todos os dias, em todos os países do mundo, sem exceção, há práticas de corrupção, mas a narrativa da inferioridade prega que os atos de corrupção ocorridos no país decorrem de um caráter de desonestidade do brasileiro. É a mesma voz que diz que o lugar que o presidente Lula ocupa tem dono e que, enfim, apesar de ser formalmente uma república, o Brasil não deve ser dos brasileiros. E não será mesmo enquanto não rompermos com a narrativa da inferioridade.