Aniversário da concidadania
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 10

Domingo, 19 de Janeiro de 2003 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Entrei pela primeira vez no jornal O Povo em 1982, a convite de Rogaciano Leite Filho, para uma entrevista sobre um livro de conto e poesia que eu estava lançando na ocasião. Os prefácios de Moreira Campos e Francisco Carvalho tinham chamado a atenção do admirável jornalista. Até aquele momento o meu olhar estava voltado quase que exclusivamente para movimentos de produção alternativa. Fiquei boquiaberto com a dinâmica da redação. Aquelas máquinas todas com tanta gente datilografando a um só tempo deixaram-me bastante impressionado. Três anos depois, conclui o curso de comunicação social e fui trabalhar lá com a disposição dos meus sonhos e vontades.

Nessas duas décadas de convivência tive a oportunidade de observar o quanto se pode ver na qualidade da imprensa a indicação do grau de evolução cidadã de um povo. E o Ceará, com apenas 200 anos de história política independente de qualquer capitania, não seria o mesmo nem de longe sem o periódico fundado por Paulo Sarasate e Demócrito Rocha. O metabolismo concidadão de O Povo tem em seu princípio ativo o poder de catalisar e de centrifugar olhares a um só tempo, tempo afora. Por isso transmuda conceitos para permanecer atual, em dia com o mundo, dispensando muito dos padrões de formatação que aprisionam a imprensa e sobrepujam identidades locais.

A exemplo do rapaz latinoamericano de Belchior, “sem parentes importantes e vindo do interior”, fui acolhido na redação num caloroso aconchego amigo que atravessa os anos na aragem das idéias entre fatos, notícias e opiniões. Dada a minha origem no campo da produção independente e sua natural tentação multimeios, encontrei também no O Povo uma feliz receptividade propícia ao exercício da inquietação e pude ir além das reportagens, agregando ao ofício cotidiano do jornalismo opções de forma de expressão e de fonte de interesse, como a coluna Apóstrofo (que eu chamava de viga por ser horizontal, no rodapé de duas páginas, com informações do universo alternativo) e as tirinhas de quadrinhos Naftalinas feitas em parceria com o Válber Benevides.

Mas é na aventura de articulista, quando tenho a felicidade de compartilhar com você, caro leitor, percepções sobre a vida e a arte, congelando apreensões não-lineares que os dias nos oferecem à reflexão, que mais consigo observar de perto a dimensão transgressora do O Povo. Toda vez que me sento para lhe escrever através desta página enxergo os espelhos do jornal transformados em janelas rompendo tantas e desnecessárias hierarquias. Por isso escrevo sem medo da imperfeição, sem receio de parecer ridículo pelo meu jeito de olhar. Existem publicações que parecem escritas por máquinas de tão perfeitas. As máquinas podem ser perfeitas, os seres humanos jamais. Gosto da imprensa feita por pessoas capazes inclusive de se emocionar, de errar, de assumir limitações e de ousar superá-las.

Esforço-me para seguir esse caminho. Já cheguei a meditar se o fato de estar sempre recorrendo a imagens para me expressar é uma questão de estilo ou de carência no conhecimento da nossa língua. Tenho a impressão de que guardo em mim efeitos do fenômeno da narração acidental espalhada em nossa cultura pela linguagem da literatura de cordel. No desejo de me fazer entender recorro a tudo o que está no quadro de avisos da minha mente e consciência. Fico constantemente surpreso com o resultado da mistura do que não parece dizer coisa com coisa servir tão bem para orientar meu pensamento e organizar a forma de expressá-lo.

A maturidade e o compromisso do O Povo de fazer as idéias circularem como grãos de areia que formam imensas dunas andantes, na latitude de formação da concidadania no Ceará, são estímulos permanentes ao saudável risco das experimentações. Um jornal cuja atitude faz convergir tradição e insubordinação comportamental é um jornal com vocação para ser eternamente jovem. Por isso vai resistindo ao tempo num país onde as publicações têm vida curta. Tudo hoje está bem diferente de 75 anos atrás, mas O Povo continua na flor da idade. O Festival de Vida & Arte, que se encerra neste domingo, com show de Elza Soares e Olodum, atesta o seu vigor numa festa de aniversário movida a expressivas manifestações da existência. O Povo é parte da construção social do Ceará. É patrimônio da cearensidade.