Ano novo em velho labirinto
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 24 de Dezembro de 2005 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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A transição democrática latino-americana alonga-se pelos anos seguintes, sem horizonte de consolidação da sua essência. Todavia, o crescimento da consciência da necessidade de reordenar a vida pelas diferenças e não pelas hegemonias é uma realidade continental. Observando as mudanças ocorridas nos países da América do Sul é possível perceber a exaltação das peculiaridades dos povos, não para o isolamento, mas para a construção da condição justa de trocas entre si e com outros povos.

Existem tensões de diversas ordens e dimensões nos doze países sul-americanos e no território que ainda não conseguiu se libertar do domínio francês, embora essa situação obedeça a uma certa condição multipolar que se configura na luta pelo controle do mundo. A Colômbia segue em eterno conflito armado entre o governo de Álvaro Uribe, patrocinado pelos norte-americanos, e os grupos guerrilheiros das Farcs, chamados de Exército do Povo. A Venezuela, de Hugo Chávez, enfrenta uma reação permanentemente violenta das minorias ligadas aos EUA e que perderam os privilégios no país. O Peru, presidido pelo inca Alejandro Toledo, está com seis províncias em estado de emergência, com suspensão dos direitos constitucionais.

A Argentina, de Néstor Kirchner, ainda amarga os efeitos da sua insurgência contra os ingleses, em 1982, quando tentou reaver as ilhas Malvinas. A Bolívia, do aymará, recém eleito, Evo Morales, está cercada por tropas estadunidenses instaladas na região de Itaipu, no Paraguai de Nicanor Duarte, e por tropas chilenas estrategicamente dispostas em suas fronteiras por orientação dos EUA. O Brasil, de Lula, continua atordoado com a crise política e, nas eleições de 2006, ameaçado de retrocesso para a privatização do seu patrimônio público.

Caso a médica socialista Michele Bachelet vença o segundo turno das eleições chilenas, no próximo dia 15 de janeiro, como apontam as pesquisas, pode ser que a questão diplomática do aliado preferencial dos EUA na América do Sul ganhe uma conotação mais latino-americana. O Uruguai, de Taberé Vázquez, passa por uma crise de tática entre os programas de um governo de esquerda e as pressões internacionais, como a que deve instalar, sob protesto de contaminação ambiental, uma mega indústria de celulose naquele país. E nesse passo seguem ainda o Equador, de Alfredo Palácio; a Guiana, de Bharrat Jagdeo; e o Suriname, de Runaldo Venetiaan, que em 2005 completou três décadas de independência da Holanda e está tentando se integrar ao continente.

Pelo visto, o labirinto não tem mesmo saída tão fácil. Os sinais projetam questionamentos no ar. O que querem dizer com seus pontos de interrogação é uma tarefa que precisamos cuidar de entender. A transformação dos sinais em visão comum e de visão em processo político compartilhado depende de um esforço de consentimento para o qual sempre fomos desestimulados: a aceitação da política como parte efetiva do nosso cotidiano. Cada momento histórico é único. Somente acreditando na política seremos capazes de distinguir os políticos vocacionados daqueles que são apenas mercadores da coisa pública. O apego pela política nos impulsiona a contribuir para a construção e desenvolvimento de alternativas que contrariem os nossos desejos induzidos pelo poder de padronização cultural e abre espaço aos nossos desejos mais verdadeiros.

As injustiças e as desigualdades se agravam mais e mais quando temos a sensação de impotência social, por força do labirinto e das replicações perfeitas das suas passagens. Queiramos ou não, o caminho para a saída passa pelo fazer político. Por isso, todos deveríamos tirar um pouco que seja do nosso tempo para fazer política. Mas fazer isso de forma consciente, pensando grande, e não somente em períodos eleitorais e em busca de vantagens localizadas. Temos que aprender a desativar o modelo mental que nos aprisionou ao alheamento. E a melhor escola de cidadania é a própria vida tratada com respeito.

Nada de pressa. Quanto mais se faz algo com calma, mais longo é o alcance e a grandeza da conquista. Poderemos começar observando os poucos políticos que admiramos; como deve ser difícil para eles serem exceções no meio do eufemismo, da desfaçatez e do cinismo dos falsos políticos. De longe, todos podem até parecer iguais, mas não são. Um paciente processo educativo nos libertará do vício de só saber falar mal, de só ficar repassando mensagens eletrônicas corrosivas e de atribuir sempre aos outros a culpa pelos infortúnios.

A intensidade de desvalores com que somos bombardeados diariamente transforma as exceções em regras e nos empurra para o fastio político. Ser ruim, ser bandido e ser cheio de armações atrai purpurina, enquanto ser íntegro não significa nada. Essa é uma equação que precisa ser desmontada sob pena de ficar cada vez mais difícil de lançarmos qualquer crença em destino. Ainda acredito nos valores fundamentais que nos fizeram conceber a história da humanidade. Vivemos uma crise de significados que será resolvida quando atentarmos para a farsa e compreendermos a ética como um nexo com a nossa consciência.

Os países e as nações são em parte as suas culturas. Na América Latina, essas culturas estão manifestando o que sentem: ninguém suporta mais viver em função de colonizadores. O povo venezuelano recuperou para si a indústria petrolífera e vem transformando petróleo em alfabetização de adultos, educação infantil e, somente de profissionais cubanos da área de saúde, conta com mais de 20 mil pelos bairros de Caracas e pelo interior do país. No Brasil, vemos os efeitos distributivos da Bolsa-Família; os avanços da nossa independência comercial; a demarcação de reservas indígenas, florestas nacionais e áreas de preservação; e a nossa ousadia de termos sido um dos articuladores do protocolo assinado em Paris, no dia 20/10/2005, por 148 países, para regularizar a Proteção e a Promoção da Diversidade e das Expressões Culturais, contrariando os interesses dos EUA.

O ano termina com a eleição na Bolívia de Evo Morales, logo no primeiro turno. Ele pretende renegociar contratos com empresas estrangeiras, nacionalizar as riquezas naturais, dar liberdade à cultura tradicional da folha de coca, proibir o narcotráfico e tem declarado que não vai criar um ministério dos brancos – a exemplo do ministério que trata especificamente das questões indígenas – para poder ser de fato o presidente de todos os bolivianos. Mas está cercado em seu labirinto, no nosso labirinto. E a saída esconde uma visão continental que possa incorporar e ampliar as visões nacionais da gente latino-americana.