Constituinte cultural e desenvolvimento
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 19 de Abril de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Duzentos e oito anos depois de assumir a sua própria vida política e de passar a ter direito a uma história que fosse sua, o Ceará decide fazer uma Constituinte Cultural, cujas bases foram lançadas no dia 13 passado, em solenidade no Theatro José de Alencar. De 17 de janeiro de 1799, data em que a Carta Régia da rainha D. Maria I separou o Ceará da Capitania de Pernambuco e permitiu aos portos cearenses comunicação direta com Portugal, até os dias atuais, é inegável a contribuição cearense na formação política e cultural do Brasil. Nossa emancipação social, iniciada com governadores nomeados pela monarquia, mas que, depois, passou a ter parlamentares e executivos públicos eleitos democraticamente, apresenta muitos avanços e muitos atrasos. Contexto por contexto, precisamos conhecer e valorizar muito mais do pouco que sabemos do nosso passado pré-colonial, do período colonial em si e dos seus remanescentes.

A realização da Constituinte Cultural cearense é uma grande oportunidade para, como diz o secretário Auto Filho, formularmos uma autêntica política de cultura, com a participação popular. A determinação do governador Cid Gomes de fazer uma gestão com transparência e participação possibilita esse tipo de mobilização social, proporcionando avanços na nossa formação política e abrindo espaços para a democracia participativa, ao integrar as instituições públicas com a sociedade civil em uma rede social tecida com apurados fios culturais. Portanto, temos em nossas mãos uma chance de nos visitarmos, de nos enxergamos em tudo o que nos distingue e nos orgulha para, assim, nos valorizarmos na complexidade planetária contemporânea.

Ainda tomando o marco de 1799, como ponto de inflexão para a fundação do tempo político cearense, costumo citar alguns dos nossos conterrâneos mais destacados na vida brasileira, para facilitar a compreensão do que fomos capazes de produzir apenas nos dois últimos séculos: José de Alencar, Rachel de Queiroz e Patativa do Assaré (literatura e poesia), Clóvis Bevilacqua e Paulo Bonavides (direito); Padre Cícero e Dom Helder Câmara (religiosidade), Raimundo Cela e Antônio Bandeira (artes plásticas), Alberto Nepomuceno, Humberto Teixeira e Eleazar de Carvalho (música), Capistrano de Abreu (história), Dragão do Mar e Tristão Gonçalves (cidadania), Delmiro Gouveia, Luís Severiano Ribeiro, Luís Carlos Barreto, José Macedo e Edson Queiroz (empreendedorismo), Aderbal Freire-Filho e Emiliano Queiroz (teatro), Luciano Carneiro e Chico Albuquerque (fotografia), Chico Anysio, Renato Aragão e Tom Cavalcante (humor), Florinda Bolkan e Luísa Thomé (cinema e televisão). No campo político, temos nomes como Castelo Branco, Virgílio Távora e Tasso Jereissati, que representam o passado, e os irmãos Ciro e Cid Gomes, Inácio Arruda e Luizianne Lins, como principais lideranças políticas atuais.

Dentro da revisão constitucional proposta pela Assembléia Legislativa e da nossa capacidade atual de reflexão e de arregimentação coletiva, a Constituinte Cultural é imprescindível para a construção de uma visão de sociedade, com aplicação concreta no cotidiano, pois sua sistematização final servirá de base para a elaboração do Plano Plurianual da Política Cultural do Ceará. Tenho a expectativa de que, pelo que conheço do secretário Auto Filho, prevaleça no final desse esforço a revelação do nosso estado cultural pela priorização da percepção do maior número de cabeças que efetivamente fazem a cultura no Ceará.

Com a realização da Constituinte Cultural poderemos aproveitar também para discutir a importância da cultura como base para o bem-estar social e pilar de sustentação da educação, da política e da economia. Sem cultura, não existe cidadania de fato. Sem cultura, não existe educação plena. Sem cultura, não existe política voltada para o interesse comum. Sem cultura, não existe economia capaz de respeitar o que mexe positivamente com a vida das pessoas em cada lugar. Dessa forma, a Constituinte Cultural ganha a dimensão de exercício de reinterpretação dos nossos conceitos de gente, de lugar, de jeito de ser, de história e de sentido de destino, possibilitando uma reanálise da cearensidade.

Há dez anos, quando era secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Javier Pérez de Cuéllar lançou, juntamente com o então diretor-geral da Unesco, Federico Mayor, um relatório intitulado de “Década mundial do desenvolvimento cultural (1988 – 1997)”. O raciocínio para a iniciativa baseava-se na constatação de que os esforços desenvolvimentistas tinham fracassado por conta da subestimação da cultura. Curiosamente, em 1994, o antropólogo anglo-americano Marshall Sahlins entregou uma monografia para a Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento, na qual argumentava que não faz sentido falar da “relação entre cultura e desenvolvimento” já que antropologicamente a economia faz parte da própria cultura de um povo.

É no âmbito desse suposto paradoxo que está perdida a chave da questão, que começaremos a desvendar no Ceará com a Constituinte Cultural. A afirmação de que não se pode mais conceber projetos de desenvolvimento dissociados das pessoas “às quais se destinam” vem de fora e já estava mesmo na hora de deslocarmos esse modo de ver para o nosso território cultural e de criarmos um novo desenho democrático e compartilhado capaz de dar conseqüência às pulsões do imaginário e da subjetividade.

Os programas de valorização cultural dificilmente permitem a participação popular além da condição passiva de fornecedora de dados e de sugestões, e de entrevistados para mapeamentos. A dimensão cultural, como parâmetro da capacidade realizadora dos seres humanos, aplicada à gestão da vida individual e coletiva tem ficado, via de regra, subordinada às questões técnicas, políticas e negociais no estabelecimento da co-responsabilidade comunitária. Cultura é uma combinação estética e política, marcada por jogos existenciais psicológicos, lógicos, místicos, lingüísticos, somáticos e arquetípicos, através dos quais os grupos sociais se relacionam com a realidade.

Espero que com a nossa Constituinte Cultural possamos chegar à imagem que necessitamos ter de nós mesmos. A definição do nosso perfil cultural é a melhor maneira de tomarmos consciência do algo que nos vincula e assemelha nossas diferenças nesse pedaço de mundo que aprendemos a chamar carinhosamente de Ceará. Somente sabendo da sedimentação contínua de nossas referências, traçadas pelas interseções das nossas evidências históricas com o ambiente natural onde a construímos, garantiremos a integridade das futuras gerações.

Considero de grande importância que tomemos a cultura como ponto original para o desenvolvimento, por ser ela a escala simbólica integradora do nosso pertencimento comum, manifestada em crenças, ritos, lendas, mitos, artes, amor, trabalho e vínculos locais, regionais, nacionais, continentais e cósmicos. O vigor de uma comunidade depende muito do entendimento que seus habitantes têm das dimensões do lugar onde a vida acontece. Por isso, espero que, com a Constituinte Cultural, a Secult encontre na inteligência e na sabedoria cearense espaço para suas propostas de visão equatorial de mundo, de revisão de conteúdos na potencialização da capacidade instalada de comunicação pública e privada existente no Ceará, de edição e estímulo à leitura de milhões de livros em todos os municípios e de várias outras ações que inserem a cultura no desenvolvimento como o ethos que lhe dá sentido.