De olho no lance!
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6

Terça-feira, 07 de Novembro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Ainda garoto eu acompanhava os jogos do Ceará e do Botafogo pelo rádio. Era comum me pegar chutando o ar nos momentos de lances importantes das partidas. O campo verde e todo o estádio cabiam tão bem em minha imaginação que eu me sentia fazendo parte do jogo. Os locutores nervosos e contagiantes tinham boa parcela dessa cumplicidade. Depois tive a oportunidade de confirmar pessoalmente, nas poucas vezes que fui aos estádios, que esse hábito não era só meu. Todo torcedor que se preza chuta o ar como se a bola estivesse à sua frente no instante de cada decisão. De forma que logo me convenci do quanto todos somos especiais em uma partida de futebol. Descobri que um gol é feito por muitas pernas em movimentos sincronizados pela magia do esporte.

Com o passar do tempo fui tomando conhecimento de que muitos resultados dos jogos do campeonato brasileiro eram previamente acordados e acabei perdendo um pouco o estímulo de torcedor. Lembro do caso da manipulação de resultados por grupos organizados para ganhar na loteria esportiva. Foi um balde de água fria na minha vibração. Mesmo assim continuei apreciando pela televisão a apresentação das boas equipes, dentre as quais a Seleção Brasileira. O time de Telê Santana, que perdeu de cabeça erguida a Copa do Mundo em 1982, na Espanha, foi o último que me emocionou de verdade, pela genialidade da força estilística dos seus craques. Não deixei de acompanhar o que veio depois, embora com o sentimento de que os dirigentes brasileiros passaram a relegar a emoção a planos secundários, centrando esforços no manejo de jogadores como produtos de exportação.

O futebol brasileiro tornou-se mais vulnerável ainda à trapaça, com o embarque do governo federal no canto da globalização, sem qualquer escrúpulo de preservação dos nossos símbolos culturais. A nossa relação com esse esporte tem uma história fabulosa, sedimentada em cem anos de prática com muitas vitórias sociais na formação da brasilidade. O futebol chegou ao Brasil no final do Século XIX, através de jovens aristocratas que iam estudar na Inglaterra. Era, portanto, um lazer de pessoas cultas e endinheiradas. Gente de cor e trabalhador comum não tinha vez. É famosa a história de um craque do Fluminense que, para jogar, teve que passar pó-de-arroz encobrindo o rosto mulato. Mas logo o futebol ganhou os subúrbios e a participação popular, tendo expandido-se para o interior com os engenheiros ingleses que vinham montar nossas estradas de ferro.

Em menos de três décadas era um esporte de unidade nacional, servindo de liga entre as classes e etnias do composto cultural brasileiro. O governo de Getúlio Vargas cuidou de imediatamente transformá-lo em um dos símbolos nacionais. A euforia foi tamanha que já em 1950, inauguramos o Maracanã, no Rio de Janeiro, então capital federal, ainda hoje o maior estádio de futebol do mundo. Mais do que um orgulho respaldado na conquista de tantas glórias, inventamos uma referência de ser no mundo do futebol. O escritor inglês Nick Hornby publicou em um dos seus livros que “até a maneira brasileira de comemorar os gols – numa corrida de quatro passos, um pulo, um soco no ar – era esquisita, engraçada e invejável”. Não é à toa que, em um século tão disputado por estrelas de tantos esportes e de países político-economicamente tão poderosos, saiu do futebol brasileiro o reconhecimento de maior atleta do século XX, que é o Pelé.

O que fazer com todo esse patrimônio cultural, conquistado em tão pouco tempo, por um País tão novo? Infelizmente deixamos a macaquice neoliberal responder e começou a evolução da decadência. A traição mais emblemática que considero, é o contrato assinado em 1996 entre a Confederação Brasileira de Futebol e a Nike, quando o Brasil passa para essa empresa norte-americana de material esportivo boa parte do controle da nossa Seleção. Um contrato com vigência até 2006, feito em inglês, com foro em Zurique, na Suíça. A Nike é uma dessas marcas acusadas de abuso de mão-de-obra escrava em países subdesenvolvidos, logo não parece ser a melhor parceira para uma associação de imagem. Cheguei a ter o pressentimento de que mais dia menos dia o capital multinacional lotearia nossos clubes de futebol, mas nunca imaginei que “arrendaria” a nossa Seleção.

A situação do futebol brasileiro vai de mal a pior. A cartolagem que controla a CBF tem os seus próprios deputados e zomba das Comissões Parlamentares de Inquérito. Negociamos teatralmente o título da Copa da França, em 1998; corremos cotidianamente o risco de manipulação de resultados dos jogos pelo marketing desportivo internacional (que no Brasil pode controlar mais de uma equipe com uma mesma marca); falsificamos documentos de jogadores para exportação; ameaçamos a classificação do Brasil na próxima Copa do Mundo, esperando a recuperação do Ronaldo para ele ter o mérito dos gols e, até bem pouco tempo, mantivemos na função de técnico da Seleção Brasileira, o dissimulado Wanderley Luxemburgo que vinha usando sócios-laranja na triangulação para a venda de jogadores que eram escalados simplesmente para aumentar a valorização do passe no mercado internacional. Foi preciso muita denúncia, inclusive a de sonegador, para a CBF substituir Luxemburgo. Em seu lugar, pôs o ex-goleiro Leão que passa a fazer as vezes de dócil interventor, com cara de Zagallo, o técnico chapa-branca que mais nos meteu nessa enrascada toda.