Futebol com preço, mas sem valor
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3

Quintas-feiras, 29 de Dezembro de 2011 e 05 de Janeiro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Parte I, 29 de Dezembro de 2011

Depois da desconcertante derrota do Santos para o Barcelona, na final do mundial de clubes 2011, realizada em Yokohama, no Japão, no dia 18 passado, as considerações ao futebol brasileiro ganharam as mais perplexas interpretações, como se houvesse uma grande novidade naquela derrota em si. Mesmo uma goleada de 4 x 0 poderia fazer parte de uma emocionante decisão, mas o que assistimos naquele domingo foi a exibição de dois formatos de conceitos de clubes: o time catalão apresentou o resultado de uma eficácia organizacional de preparação de longo prazo e o time paulista mostrou muito bem o desempenho de uma equipe representante do imediatismo pecuniário.

Ambos mostraram que são vitoriosos em seus modelos de negócio, com execução associada à grandeza de cada estratégia. Um e outro encerraram a partida arrecadando legitimamente (em tese) o máximo de dinheiro que um evento desse porte consegue arrecadar, com transmissões, pacotes de viagens, merchandising, ingressos e licenciamentos. A diferença é que o clube brasileiro, vítima do apetite insaciável e da inconsequente compulsão por ganhos exorbitantes da cartolagem, representa uma extravagante filosofia de obtenção de sucesso financeiro, vinculada ao empobrecimento e ao desgaste da imagem do futebol brasileiro.

Na entrada do Museu do Futebol, no estádio do Pacaembu, em São Paulo, pode-se ler uma sentença que explicita bem a lógica que está por trás de tudo isso. A frase afirma que o Brasil se orgulha de ser o país que mais exporta craques para o futebol mundial. Por essa abordagem, mesmo decadente enquanto esporte, o futebol é vitorioso no Brasil. A nossa taxa de crescimento econômico, baseada na exportação de jogadores “in natura” e no cultivo em larga escala de atletas transgênicos, está em linha com o papel assumido pelos loteamentos de primeira, segunda e terceira divisão do campeonato brasileiro, no nível mais primário da cadeia de suprimentos do futebol internacional

Esse caráter “for export”, imposto ao País que tinha a imagem de grandes clubes e de melhor seleção do mundo, faz parte de uma ultrapassada mentalidade de negócio desportivo, formalizada no final da década de 1980, quando os dirigentes dos clubes sudestinos organizaram uma espécie de cartel, formado pelo Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo, Santos, São Paulo, Corinthians, Palmeiras, Grêmio, Internacional, Cruzeiro, Atlético-MG e Bahia, para definir as regras, mandar e desmandar no futebol brasileiro. O estica e puxa de interesses nos negócios esportivos levou o chamado “Clube dos 13” a incluir posteriormente cadeiras para o Coritiba, Goiás, Sport, Vitória, Guarani-SP, Atlético-PR e Portuguesa, fechando em vinte a mesa de influências.

Como mesmo as artimanhas propensas à concentração podem trazer benefícios colaterais amplos, o esquema montado pelos cartolas conseguiu melhorar significativamente o sistema de transmissão de jogos e isso é um ponto positivo para a atração de torcedores e fortalecimento do futebol como uma paixão nacional. Entretanto, em sua ganância desmedida, os comandantes dos negócios do futebol no Brasil, mancomunados com os da Federação Internacional de Futebol (Fifa), montaram na maioria dos clubes brasileiros uma forma de organização que prioriza o curto prazo, o ganho rápido (não de jogo, mas de dinheiro) e o lucro acaçapante na comercialização de jogadores.

O mercado de atletas está superinflacionado. Tem bolha na marca do pênalti. O futebol brasileiro vive a sua crise de subprime desportivo, com times comprando jogadores, sem garantia suficiente para cobrir o risco. Os comerciantes de pernas-de-pau negociam entre si e empurram nos clubes jogadores que não rendem o que ganham. O nosso futebol passou a ter preço, mas não tem valor. Na relação internacional, resta ao torcedor brasileiro o consolo do caroço de Ronaldos e Adrianos e suas ridículas hipérboles de “Fenômeno”, “Imperador” e “Fabuloso”.

O quadro interno é crítico. Os sinais de manipulação de jogos são evidentes. O resultado de 6 x 1 de um Cruzeiro cambaleante sobre um Atlético-MG bem superior, que definiu a manutenção da “Raposa” na série A do Brasileirão é um exemplo do que pode um patrocinador em momentos de decisão, mesmo em caso de clássico. Os jogadores do “Galo” teriam permitido a goleada como denúncia à interferência direta do BMG (patrocinador das duas equipes mineiras) na dinâmica do campo. E os torcedores ficam com o direito de falar, desde que paguem ingresso e assinem os canais de transmissão dos jogos dos seus times.

A intervenção escancarada dos bastidores nos resultados é um prática antidesportiva experimentada, inclusive, no âmbito da Seleção Brasileira, como foi o caso da derrota de 3 x 0 para a França, na Copa do Mundo de 1998, quando mesmo em misterioso estado convulsivo o jogador Ronaldo entrou em campo cumprindo um contrato com a Nike e, consequentemente, colaborando vergonhosamente para a derrota do Brasil. E o pior é que muitos de nós pensamos que a Seleção Brasileira é do Brasil, quando na verdade ela é apenas uma grife, que pertence a um grupo de cartolas, que faturam com a imagem do País, sem pagar royalties ou sequer levar em conta os interesses dos brasileiros. Se o futebol brasileiro fosse do País, pelo menos a indústria brasileira seria líder mundial na fabricação bolas, chuteiras, uniformes e outros artigos afins.

A insistência da Fifa para que o parlamento do Brasil altere o Estatuto do Torcedor (criado para reduzir a violência nas arenas) de forma a permitir a venda de bebidas alcoólicas dentro dos estádios, por ocasião da Copa das Confederações (2013) e da Copa do Mundo (2014) é um bom exemplo da petulância dos déspotas do futebol. O descaso e o desrespeito resultantes do conluio entre cartolas, patrocinadores, políticos e gestores públicos parecem não ter limites. Nos jogos do Brasileirão 2011, os estádios ficavam cheios de tubos de saco plástico, com a marca da Brahma, sujando tudo e caindo no gramado, como um afronta à sustentabilidade, e ficava por isso mesmo.

Às vezes me pego pensando se não seria o caso de a torcida brasileira fazer uma campanha contra patrocinadores que se comportam assim. Uma “primavera brasileira” do esporte, com manifestações de repúdio a essas práticas lancinantes. Outro dia, acordei com a ideia de que os times da periferia do que se tornou o “Clube dos 13” pudessem se rebelar e sair do Brasileirão, criando o Brasileirinho, um campeonato paralelo, com regras mais decentes, mais condizentes com o futebol. Nas minhas cogitações indignadas, já cheguei a imaginar que a Seleção Brasileira deveria ser financiada pela torcida, em uma espécie de sócio-torcedor, para que tivéssemos uma seleção de camisa limpa, para jogos limpos.

Uma opção para regular a bandalheira que domina o futebol no Brasil seria contar com o parlamento, mas não sei nem porque estou me lembrando disso, pois a chamada “bancada da bola” tem tanto poder no Congresso Nacional quanto as bancadas “da fé”, do “comércio ilícito” e do “agronegócio”. Existem Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) em Brasília, para investigar a corrupção da cartolagem brasileira, mas a desconfiança crescente na nossa representação é tão grande que nunca se sabe se a intenção é mesmo acabar com a roubalheira, se não passa de artifício de extorsão, de necessidade de holofotes ou de rusga política (continua na quinta-feira, dia 5 de janeiro de 2012).

 

Parte II, 05 de Janeiro de 2012

Enquanto parte do futebol europeu se fortalece com gestão profissional e com a criação de laços entre jogadores e torcida, o futebol brasileiro não consegue mais formar times consistentes porque está ancorado na cartolagem de vantagens recíprocas de faturamento de giro rápido de atletas. Clubes como o Barcelona representam um novo ciclo, moldado na eficiência desportiva, na transmissão de valores educativos, na multiplicação e internacionalização de franquias de escolinhas e na valorização de atletas polivalentes, aptos ao jogo em equipe, sem dispensar o brilho pessoal.

Em que pese a imagem de clube economicamente pujante, administrativamente eficaz e socialmente responsável, o Barcelona tem sido criticado nos últimos anos por ter negociado um espaço em seu uniforme para uma dobradinha de propaganda da Fundação Catar com o Unicef. Essa crítica é feita inclusive por Johan Cruyff, lendário craque holandês, identificado como um dos principais treinadores do estilo de jogo do time catalão. Cruyff acha que o Barça está obcecado por dinheiro. E seu ponto de desconfiança é a relação direta do clube com o Catar, emirado árabe cheio de petrodólares e petroeuros, que sediará o Mundial da Fifa em 2022.

Seja como for, em campo o Barcelona impressiona, encanta e puxa para cima a discussão sobre o futebol em todo o mundo. A goleada no Santos, mostrou com classe o quanto o sistema vigente no Brasil, mesmo lucrativo para os cartolas, move-se em sentido contrário a uma tendência de gestão que respeita o futebol como uma paixão sem, no entanto, deixar de tratá-lo como negócio. A derrotada santista poderia ter sido de qualquer outra equipe brasileira, do grupo circunscrito à manipulação de regras e preços de jogadores.

A ganância da cartolagem no Brasil explora a arte do futebol nacional, como antes explorava pau-brasil. Com a ascensão do teletorcedor, os resultados dos jogos, assim como a sequência das telenovelas, parecem se desenrolar conforme pesquisas de audiência. O torcedor que vai ao estádio passou a ser uma espécie de figurante de partida, papel de parede das arquibancadas; um tipo coadjuvante das marcas que patrocinam as transmissões. Isso faz com que a situação degradante do futebol brasileiro (derrotado em sua glória, mas vitorioso na exportação de atletas) seja um desafio a ser superado apenas com muita pressão das torcidas.

O torcedor precisa saber que ele tem a força para impor a construção de regras mais honestas para o funcionamento dos clubes e campeonatos. Para isso, talvez devesse ir além das tentativas de influenciar apenas técnicos e jogadores. O urro nos estádios, nas recepções dos aeroportos, nos dias de treino, poderia ser voltado também aos patrocinadores, boicotando seus produtos e suas marcas, quando esses patrocinadores agredissem o andamento dos times, interferindo negativamente em escalações e nos resultados.

A vaia que a Pepsi levou da torcida do Ceará, na final do campeonato cearense de 2011 e que fez a multinacional mudar a sua marca para preto e branco, quando voltou a entrar no gramado do PV, em jogos do alvinegro no Brasileirão, é uma prova de que há algum acatamento quando a torcida protesta. É de presumir-se que uma campanha de cancelamento em massa de assinaturas de canais de transmissão de jogos poderia surtir efeitos imediatos de atenção aos interesses do torcedor-consumidor.

Jogo de corpo não é falta no futebol. Na luta pelo fortalecimento dos clubes e do futebol brasileiro também não. Um movimento pacífico para tentar estancar a sangria de talentos até que cairia bem. Os europeus criaram algumas regras para limitar o número de jogadores estrangeiros nos clubes, evitando a asfixia dos atletas locais. Mesmo que o “jeitinho” dado pelos dirigentes de times daqueles países tenha partido para o recurso da dupla nacionalidade, o resultado da aplicação dessa barreira é de melhoria continuada.

O torcedor brasileiro poderia muito bem pugnar por limites na desova de craques; uma espécie de período de defeso dos atletas brasileiros ainda imaturos profissional e psicologicamente. Foi possível com crustáceos e peixes, ainda que muitas empresas de pesca burlem esse impedimento legal. Fazer algo parecido no nosso futebol, seria uma questão de preservação de um esporte que está profundamente identificado com a cultura brasileira. Talvez precisemos inventar um Ibama da bola, com a competência de desenvolver e executar políticas públicas voltadas para os cuidados com esse patrimônio nacional que são os nossos talentos futebolísticos renováveis.

A canibalização dos clubes pela cartolagem não é tão distinta do que vem acontecendo negativamente em muitas empresas, cujos bens e direitos são assaltados por executivos integrantes de esquemas rotativos de headhunters, que só pensam nos próprios bônus. No modelo de negócio altamente vitorioso no imediatismo, preponderante no futebol brasileiro, a situação é semelhante. Os velhos e apaixonados “olheiros” foram chutados para fora de campo por “caçadores de cabeças” do futebol com preço, mas sem valor.

A situação reflete-se em games como o “Cartola FC”, um jogo de transação virtual de jogadores, no qual os usuários realizam compras e vendas de atletas, cujo preço sobe ou desce conforme seus desempenhos nas partidas do Brasileirão. É bem interessante esse exercício de apostar na atuação futebolística real, com efeitos nas arenas dos computadores. O que soa ruim é a legitimação da simbologia da cartolagem na denominação do jogo, dificultando que novas versões abram espaço para a valorização da descoberta de bons jogadores, fora dos territórios dominados pelos cartolas.

Por ser um esporte de origem inglesa, o futebol brasileiro herdou das tradicionais cartolas londrinas – chapéus pretos, com parte superior cilíndrica e elevada – uma identificação para a sua classe de dirigentes esportivos. Entretanto, as ações inconfessáveis de bastidores de muitos desses dirigentes, resultaram na aplicação pejorativa da palavra “cartola” a todos que enriquecem na gestão de clubes de futebol. E, como um tumor maligno metastático, o sistema da cartolagem está muito enraizado no País; o que é lamentável e revoltante.

O hábito de ganhar tubos de dinheiro, em detrimento da sustentação dos clubes e da degradação da imagem do futebol brasileiro, configura-se um ato ilegal e imoral de concentração e de vandalismo dos cartolas. Isso vale também para a questão regional, onde a formação de grandes equipes é prejudicada, debilitando o nível das competições nacionais. Basta observar que quando técnicos e jogadores se destacam nas equipes periféricas, o regulamento do campeonato brasileiro permite que, dentro do mesmo certame, eles sejam comprados pelos chamados grandes clubes, nem que seja apenas para neutralizá-los.

O pior é que, desesperançada, muita gente começa a planificar o valor dos atletas, nutrindo um certo desprezo pelos craques. Ora, os craques são jogadores admiráveis, na alegria do jogo, no lance inesperado, e não para ter o time como seu dependente. O Santos de Pelé, tinha também Gilmar, Pepe e Coutinho… o Botafogo de Garricha, tinha Nilton Santos, Didi e Gérson… o Palmeiras de Luís Pereira, tinha Ademir da Guia, Leivinha e Edu…

o Boca Juniors de Maradona, tinha Perotti, Benitez e Pasucci… assim como o Barcelona de Messi, tem Xavi, Iniesta e Puyol. Agora, mais do que craques, os bons ciclos nas vidas desses times, contaram com a combinação de técnica, tática e visão coletiva. Quer dizer, antes de preço, é preciso ter valor.