Nosso vizinho Evo Morales
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 10 de Maio de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Depois de um ano da nacionalização das reservas de petróleo e de gás boliviano, por decreto do presidente Evo Morales, fato ocorrido no 1º de maio do ano passado e que envolveu a Petrobrás entre doze empresas estrangeiras, podemos observar o quanto os esforços pacíficos do Itamaraty estão sintonizados com os desejos da maioria dos brasileiros e com os rumos integradores da América Latina. A nossa empresa de energia continua administrando suas duas refinarias, embora às vezes surpreendida com decisões intempestivas de Morales, como a regulamentação do decreto, assinada domingo passado, que torna monopólio da estatal boliviana, YPFB, a exportação e comercialização de petróleo e gasolina, afetando o caixa da Petrobrás com a fixação de preços abaixo do valor de mercado.

A pressão em cima do Governo Federal para tomar providências extremas na tentativa de proteção do patrimônio brasileiro no exterior foi exagerada no último ano. As opções apresentadas variaram de invasão militar a união com outros incomodados para derrubar o governo legítimo e democrático de Evo Morales, punindo-o por tamanho desaforo. Acostumadas a serem meras intermediárias dos interesses geopolíticos estrangeiros, essas vozes destoantes do amadurecimento democrático brasileiro não conseguiram, contudo, desviar a atenção do Brasil do seu propósito de encontrar a solução pelo diálogo ou, em caso de impasse, recorrendo à Corte Internacional de Arbitragem.

A época de subserviência do Brasil aos caprichos dos velhos e novos conquistadores está passando. O País tem exercitado sua autonomia e, problemas fronteiriços como esse com a nossa vizinha Bolívia, devem ser resolvidos ao modo dos dois países. Estamos em uma mobilização árdua para fugir da lei do “cada um por si” e de “quem for podre que se quebre” instituída em nosso continente pelos colonizadores. A nossa relação com o admirável povo boliviano é de bons vizinhos, independentemente de quaisquer diferenças apontadas por índices de desenvolvimento.

Pela vontade tosca da poderosa minoria de brasileiros, que se sente com o umbigo enterrado no que acredita ser o primeiro mundo, Evo Morales pode até ser nosso vizinho, mas é um vizinho favelado, causador de insegurança. Se pudessem, removeriam a Bolívia e outros vizinhos pobres para uma área bem afastada dos picos da Cordilheira dos Andes, onde não tivessem como viver, nem como voltar e tampouco como reclamar a posse das suas riquezas naturais.

Felizmente o governo democrático brasileiro não pensa assim. Alinhado com o sentimento humanitário dos brasileiros, o presidente Lula vem tratando com habilidade, equilíbrio e retidão a questão do gás e do petróleo boliviano. Esse tipo de postura fraterna do governo brasileiro nos confirma que é possível acreditar que poderemos ter uma história própria, compartilhada com a história dos nossos vizinhos.

Evo Morales tem declarado que quando pensa no Brasil, pensa em um irmão maior, em um povo alegre e dinâmico que, como o povo boliviano só quer superar a pobreza e ser feliz na condução do próprio futuro. A nacionalização dos hidrocarbonetos é uma questão de sobrevivência daquela sociedade e não havia como deixar de fora a Petrobrás ao propor a renegociação dos contratos com todas as refinarias estrangeiras que, em conjunturas ditatoriais e neoliberais foram autorizadas a explorar vergonhosamente a riqueza boliviana.

Esse episódio, tratado com o coração e a sensibilidade de dois vizinhos que gostam de sentar na calçada para conversar, tem um aspecto muito curioso. Lula e Morales são dois autênticos líderes políticos de uma América Latina que se desenha mais disposta a reunir condições para exigir respeito por parte dos novos conquistadores. Ambos são, em si, a cara das suas gentes e têm o invejável atributo de contarem com a confiança da maioria da população dos seus países.

Não fosse a forte crença dos brasileiros nos propósitos do presidente Lula e na eficiência do Itamaraty, a temporada de terrorismo de contra-informação aberta no último ano, com a finalidade de jogar o povo brasileiro contra o povo boliviano e contra o Governo Federal, teria no mínimo nos levado a uma guerra desnecessária para nós, mas muito lucrativa e proveitosa para a indústria internacional de armas, para o capitalismo transnacional e para os políticos golpistas.

Na confusão entre evidência histórica e verborragia ideológica, Lula e Morales não se deixaram abalar. Isso mostra que, com todas as deficiências que têm em suas administrações, os governos do Brasil e da Bolívia sabem muito bem que dirigir um país não é a mesma coisa de gerenciar um negócio. Brasileiros e bolivianos querem paz, companheirismo e cooperação na construção de uma América do Sul integrada ao mundo globalizado, mas digna.

Por isso interessa ao Brasil ser o mais justo possível com a Bolívia na questão das refinarias. Justo, e não paternalista, como às vezes se confunde o governo Morales. Sabemos que o futuro do continente passa por um sem-número de correção de injustiças e, tratar de resolvê-las sem intimidações, boicotes econômicos e violência armada, faz parte da nossa índole. Não é caminho fácil de percorrer, pois, além dos conflitos próprios de qualquer vizinhança, temos que nos desvencilhar da mentalidade sub-imperialista que ainda está fortemente arraigada em muitos brasileiros poderosos.

As diferenças entre vizinhos e não-vizinhos formam um dos pontos mais encantadores da história das civilizações. Seria muito pouco estimulante vivermos em um mundo de idênticos. As movimentações humanas pelo planeta geraram ao longo do tempo toda sorte de adaptações e jeitos de ser, combinados com o ambiente onde se instalaram e na relação entre culturas. O passado da humanidade é trágico e brilhante. O presente também. Os povos melhor armados e economicamente mais fortes têm sido os vencedores, mas por esse caminho levaram o planeta à exaustão.

No Brasil, posicionamentos políticos internacionais, pautados pela negociação, como o que adotamos com relação à Bolívia, anunciam que estamos inclinados a contribuir com outros valores para o século XXI. Muitos brasileiros entendem que o nosso privilégio de natureza continental e a nossa vantagem sincretista, nos impõe a responsabilidade de responder ao máximo, entre o excesso e a falta, o desdobramento da realidade em suas múltiplas possibilidades civilizatórias.

Se o nosso vizinho Evo Morales não nacionalizou os hidrocarbonetos do seu país por ganância, mas por precisão, é nossa obrigação, de “irmão maior”, sentar para encontrar saídas que o aliviem do seu desespero. E estamos fazendo isso respeitando as razões dos dois países. O que mais tem chamado a minha atenção na posição do Brasil neste caso é a importância da coragem de romper com as cobranças alarmistas dos incomodados na hora da busca de soluções decentes a problemas tão graves. Ao agir assim, o Brasil apóia a Bolívia, reforçando sua reivindicação no que diz respeito às multinacionais que vinham explorando de forma desmedida a riqueza daquele país, embora, para isso, tenha exercitado ao máximo a paciência diplomática. Mas a Bolívia precisa ajudar…