É com o nosso repertório cultural que circulamos pelo mundo. Mesmo em situação de isolamento, as referências do que experienciamos na vida não nos deixam desacompanhados. Elas sempre chegam em forma de pensamentos ou de imaginação e nos conectam até com o que eventualmente possa parecer inalcançável.

Sentindo-se solitário, o personagem Torito, do meu novo livro/álbum de literatura e música para crianças, sai seguidamente do quarto por frações de segundos em episódios da mesma história que se abre às vezes em que ele andou pela cidade, que brincou com figuras da literatura, da cultura popular e da escola.

Essa busca por si mesmo em momentos de confinamento, transforma-se em conforto para o espírito, não obstante as condições restritivas do corpo. No livro “A viagem ao redor do meu quarto”, o escritor Xavier de Maistre (1763 – 1852) expõe pensamentos filosóficos e paródias autobiográficas criados como recurso contra o tédio durante o tempo em que ficou recluso.

O autor havia cometido um crime e estava preso em uma cela na fortaleza italiana de Turim, quando resolveu zombar das circunstâncias, propondo uma nova maneira de viajar através dos recursos da mente. Percebera que partir de viagem sem sair do cômodo em que se encontrava só dependia de uma multidão de pensamentos e de entregar-se à imaginação.

O argumento de que esse tipo de viagem não custa nada, não apresenta receio de intempéries climáticas, nem risco de assaltos foi também utilizado por Monteiro Lobato (1882 – 1948) quando esteve preso por tentar convencer os brasileiros de que o país tinha petróleo e ferro, e que poderia ter independência econômica das multinacionais que exploravam esses setores.

Em carta escrita de dentro da prisão a Maria Pureza, com quem era casado, o criador do “Sítio do Picapau Amarelo” revelou que nunca os seus pensamentos haviam trabalhado tanto. E, com ironia fina, disse que o mais importante para quem está na prisão é perder o medo de ser preso. No livro “Furacão na Botocúndia”, Carmen Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta contam muitas dessas tiradas imaginativas.

“Bluebird” (2019), técnica mista sobre lona usada de caminhão, do artista visual fortalezense Henrique Viudez, inspirada em “O pássaro azul”, do poeta alemão Charles Bukowski (1920 – 1994). @henriqueviudez

Uma das histórias de Lobato que escapam do tormento da cela está na carta que ele enviou ao general que o havia encarcerado, agradecendo pelos dias inesquecíveis em que passou na prisão, quando teve a oportunidade de observar que a maioria dos detentos é gente de alma muito mais elevada do que certas pessoas do alto escalão que vivem soltas.

O biógrafo Jean Lacouture (1921 – 2015), no livro “Ho Chi Minh”, narra a ironia do líder revolucionário vietnamita registrada quando atrás das grades; ocasião em que fala da honra de estar preso, com lugar para dormir, comida e guardas que se revezam, servindo de séquito para ele. Com simplicidade luminosa, dizia aos prisioneiros que corpos podem ser detidos, mas espíritos, não.

Na prisão, Ho Chi Minh (1890 – 1969) escreveu diversos poemas dotados de ternura camponesa. Um deles diz assim: “A rosa se abre e a rosa murcha sem saber o que faz a rosa. Basta que o perfume de uma rosa se espalhe por um presídio para que uivem no coração do detento todas as injustiças do mundo”. A expressão serviu para todo o seu país, do qual se tornou presidente.

Na condição que for, circular pelo mundo fora do quarto passa, antes de tudo, pelos pensamentos e pela imaginação, pela ciranda das palavras e pelo vaivém do coração. Seja por alívio de dores causadas por restrições individuais, para libertar um povo de domínio colonial, para alertar outros do quanto a desinformação gera dependência ou simplesmente para uma criança se divertir enquanto dorme sozinha.

Fonte
https://mais.opovo.com.br/colunistas/flavio-paiva/2023/01/30/o-mundo-por-fora-do-quarto.html