Padre Cícero a granel
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 05 de Outubro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Nas ruas de Juazeiro, nas lojas e nas barracas da Colina do Horto nada é mais pop do que as estampas formadas pelas réplicas alinhadas da imagem do Padre Cícero. Batina, chapéu e bengala pretos, mãos e rosto em tom rosado, olhos puxados para o azul claro e cabelos brancos. Uma peça eminentemente kitsch que ocupa ardorosos santuários caseiros em todo o Nordeste. Quando muito, a peça era pintada com a batina branca. Do dia primeiro de novembro de 1969 para cá, depois de erigida a estátua sem cor do maior fenômeno da nossa cultura popular, começaram a ser vendidas alvas estatuetas que tiram a beleza artístico-sentimental do personagem.

Que o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, e a Estátua da Liberdade, em Nova Iorque, sejam cor de cimento, neve ou com matizes esverdeados, devem existir inúmeras justificativas conceituais, técnicas e de manutenção para isso. Uma nasceu como espetacular apelo turístico e a outra por consequência de um presente da diplomacia francesa, tornando-se o principal símbolo norte-americano. A do Padre Cícero, não. Foi o suor da fé que a construiu. Descorada como as outras, não combina com a sua razão de existir, pois não traduz a alma em brasa dos peregrinos e seus múltiplos significados políticos, sociais e religiosos. Pintar a estátua de Cícero Romão Batista nas suas cores autenticamente saídas da ingenuidade artesã, seria um ato de percepção e respeito aos valores populares, além de uma ação esteticamente revolucionária e turisticamente estratégica.

Tenho a impressão que se fosse feita uma pesquisa entre os romeiros, na qual eles pudessem livremente optar entre pintar ou não a estátua do Padre Cícero, a maioria daria preferência ao monumento colorido. Não fosse assim, as pequenas estátuas dispostas nas praças de incontáveis cidades nordestinas seriam apenas caiadas ou de cimento natural. Mas não, cada uma preserva e ratifica as cores tradicionais do caráter popular do polêmico personagem. Dizem que todos os municípios do estado de Alagoas têm uma estatua do Padre Cícero em praça pública. É impressionante o poder telúrico exercido pelo arquétipo desse líder visionário. Os santuários particulares mais modestos, dos mais modestos lares do sertão, pontuam o destino dessa gente regada a fé e trabalho duro.

Juazeiro do Norte, o Cariri, o Ceará, e o Nordeste brasileiro poderiam por à prova a diferença da sua geografia humana, aproveitando melhor o sotaque do potencial carismático do Padre Cícero. Deixá-lo solitário com as multidões de fiéis que o rodeiam ou entregue ao silêncio de apuradas pesquisas acadêmicas e centenas de publicações dispersas, é muito pouco para o tamanho da história. Sua força pode ir mais além da tecedura tradicional. A solidez da admiração a esse mito, sugere novos olhares, novos holofotes e novo momento evolutivo na relação do santo popular com o povo que o canonizou, independente das idiossincrasias do Vaticano. Urgem algumas incidências de luz que não afetem a fé e possam multiplicar a herança e os benefícios adicionais contidos nessa imagem emblemática de indiscutível onipresença no castigado sertão nordestino.

Muitas atitudes relevantes vêm sendo tomadas para soerguer a auto-estima e a qualidade de vida caririense. Os salesianos buscam apoio para a construção da futurista Igreja do Bom Jesus do Horto e alguns esforços na área de meio ambiente também merecem destaque, como é o caso do consórcio entre Ceará, Pernambuco e Piauí, cuja intenção é incorporar nas suas políticas públicas o cuidado com a biodiversidade da Área de Proteção Ambiental da Chapada do Araripe. Com o oxigênio catalisador do Pacto de Cooperação foi possível superar parte das arestas hostis que freavam o diálogo entre as elites dos municípios da região. Pelo viés econômico, a criação da Cariri Invest tem sido fundamental, por esmiuçar o potencial agroindustrial, mineral e turístico da região, atraindo investidores e promovendo novos negócios.

O conceito de “cluster” econômico, inspirador dos projetos de vantagens comparativas, norteia sonhos de desenvolvimento mas tende a pecar na insuficiência da compreensão cultural. Um lugar como o Cariri, localizado no centro radial do Nordeste, deveria esbanjar projetos de “cluster” de cultura popular. Seduzidos pela figura mística do Padre Cícero, contingentes e mais contingentes de romeiros levaram ao longo de décadas cada célula do exuberante tecido cultural nordestino para fazer de Juazeiro a síntese de um mundo perverso e encantador. A indústria do milagre proporcionou o florescer de expressões artísticas berrantes e desassossegadas. Não desmerecendo as demais riquezas da região, o diferencial competitivo mais considerável do Cariri é sua cultura popular.

Nada é mais natural do que a alteração de hábitos e padrões de desejos desenhados pelo tempo. O modo de vida das pessoas merece o impulso transformador da existência. Quem é vazio, recebe sem pestanejar os alhos e bugalhos dos modismos, mas quem tem tutano cultural é osso duro de roer. A química da modernidade não deve macular a arte cotidiana da diferença. A fragrância das ruas de Juazeiro tem erva-doce na sua ventilação informal e trágica. Esses projetos que chegam a defender a aclimatação dos espaços de acolhida aos romeiros, nunca sentiram sequer o cheiro do húmus daquela terra. Desconhecem o valor intrínseco da simbiose sócio-econômica circunspecta ao bem fincado tronco político e religioso do Padre Cícero Romão.

Engane-se quem quiser, mas está claro que não existe inocência metodológica nas exigências ordenadoras dos bancos mundiais da vida. Não que se deva rejeitar financiamentos para o que a gente nem sempre tem certeza se precisa. Isso carece apenas de mais atenção e responsabilidade no trato das verbas públicas. Regiões privilegiadas como o Cariri, jamais deveriam abdicar de um intenso e renovado processo de valorização cultural. Suas manifestações populares, tratadas como apêndice dos negócios turísticos, são na verdade o maior insumo para a produção do desenvolvimento.

É incompreensível a ausência de um projeto capaz de sacudir o vastíssimo patrimônio imaterial caririense, ao ponto de torná-lo referência internacional de cultura popular. O Ceará deveria ter naquela região pelo menos um evento arrebatador nesse sentido. Artistas do mundo inteiro marcariam um encontro de estilos multiétnicos para celebrar a beleza e a força da arte popular. A cobertura espontânea da mídia nacional e estrangeira repicaria todo o vigor das nossas bandas cabaçais, literatura de cordel, cantorias, artesanato em couro, madeira e argila, do encanto florestal do Araripe, da reserva fossilífera de Santana e do culto ao Padre Cícero, revitalizando o comércio, incentivando o turismo e gerando renda com maior capilaridade.

O que se vê são incentivos direcionados para a indústria hoteleira, parques temáticos, centros de convenções e lojas de conveniência em postos de gasolina, no melhor dos modos norte-americano e europeu. Os recursos públicos priorizados para obras de infra-estrutura acabam ficando em poucas mãos. E ninguém vai cair na tolice de negar o mérito do investimento em infra-estrutura. Mas só isso, na ótica do interesse coletivo, é jogar dinheiro fora. Muitos desses empreendimentos não valem um prato de arroz com pequi, uma pedra de peixe (1) ou um poema do Patativa do Assaré. O espírito caririense não tem por que ficar vagando à toa. Está na hora de chamar o Padre Cícero, de pintar o Padre Cícero e mostrar que nada pode ser mais moderno e impactante do que a estátua de um santo popular, colorida a rigor, no alto de uma colina no interior nordestino.

(1) fóssil comumente encontrado na região de Santana do Cariri, Ceará.