Rebeca Matta e a rosa sônica
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 21 de Dezembro de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Os recursos disponibilizados pelos avanços tecnológicos para a produção musical têm deixado muita gente perdida na hora de utilizá-los. Nesse cenário, Rebeca Matta está entre as exceções, por concatenar bem o feixe de protocolos e linguagens codificadas da eletrônica com a poética da sua composição, conseguindo qualidade sonora e musical. O CD “Rosa Sônica” é uma prova dessa competência, desenvolvida a partir de diversas influências musicais e de claro compromisso com a liberdade criativa.

A produção de um símbolo floral, com sentido concreto e ressonante, aplicado à sua música, dá a Rebeca Matta um quê todo especial de quem enxerga na transfiguração dos beats, riffs, loops e ruídos eletrônicos a dimensão da arte. O CD “Rosa Sônica” é uma metáfora da delicadeza no caos. Recupera a subjetividade humana em um sistema oscilante de circuitos culturais, dominados por tempestades tecnológicas, que se expandem em parâmetros de homogeneização e flutuação de superficialidades.

A artista, que nasceu e vive em Salvador, na Bahia, há 39 anos, cuida da sua onda com liberdade criativa e uma certa solidão estética, sem, contudo, se limitar a guetos estéreis. É uma compositora e cantora brasileira que conquistou respeito e atenção pela consistência no que faz. “Eu acredito em tudo que vibra / acredito no amor / de quem dá pra quem procura. / Pode ser cura / pode ser loucura”, declara na faixa que dá título ao novo disco de letras mais puxadas para o pop. “Rosa Sônica” foi viabilizado pelo Projeto Petrobrás Cultural, na categoria “Produção Musical Contemporânea” e tem produção de Gilberto Monte e Ângelo Thomaz (Boing), co-produção de Rebeca Matta e Arto Lindsay como produtor associado. A produção executiva é de Luís Sávio, com quem Rebeca compartilha tantas coisas.

No dia três deste mês, vi uma apresentação de Rebeca, com a Orquestra Sônica, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador. Ela se parece com a obra. O público percebe e gosta dessa verdade. É um trabalho que tem magneto criativo e valor artístico. No palco, Rebeca Matta se movimenta em gestos estroboscópicos, descompassados e intensos, como a música que toca e é por ela tocada. Vê-se ali como as forças estão soltas. O figurino é casual, mas refinado, com apliques no cabelo e plataformas de uma dezena de centímetros. Enquanto no palco ela quebra o pulso em declaração de pulsão de vida, um telão introjeta no ambiente imagens combinadas de fogo de vela e contorções teatrais da própria Rebeca.

O espetáculo tem conteúdo porque o trabalho em si dispõe de propriedades artísticas relevantes. Essa existência de valor na linguagem caótica de Rebeca é reforçada por suas qualidades como intérprete. Ela canta como quer cantar, como acha que é preciso cantar. Por vezes, soa em voz cristalina pertinho de você; em outros momentos afasta-se para misturar a palavra à voz dos instrumentos e dos equipamentos de programação eletrônica, numa revoada de scratches. O trabalho de Rebeca Matta é pleno de autenticidade, somando-se ao que há de bom na espectroscopia da Música Plural Brasileira.

 

Nos três CDs que lançou até agora, nota-se a dissolvência de padrões rítmicos e de estilos, numa abertura de possibilidades a novos contornos de interação musical. E isso só é possível porque todos os seus condutores e semicondutores passam por sua própria casa de força e luz. Ela é a liga comum da arte que faz e não os estilos, gêneros e ritmos com os quais trabalha. A música de Rebeca Matta apresenta-se sempre como probabilidade. Não há o certo e o errado, apenas o provável.

Estabelecer uma correlação entre os seus três discos é um exercício aparentemente desnecessário. Cada qual é único, embora de uma artista única, o que provoca o desejo de explorar suas semelhanças, diferenças, enfim, de fazer relações entre um e outro. No fundo, no fundo, são registros de propagações, ondulações fixadas, cujo objeto, que é a música, tem a dimensão do comprimento da própria onda. Como já disse, a constante que controla a evolução do trabalho de Rebeca é ela mesma, com suas partículas de poesia e vontade de fazer permanentes experimentações.

O primeiro, “Tantas Coisas” (Independente, 1998) é, particularmente, o que gosto mais. Tem mais imperfeições em seu jogo de trip hop, MPB e rock. O segundo, “Garotas boas vão pro céu, garotas más vão pra qualquer lugar” (Lua, 2000), tem pegada mais roqueira com toques de MPB. Um belo e eletrizante trabalho. O terceiro, “Rosa Sônica” (Lei Federal de Incentivo à Cultura, 2006) é essencialmente arte eletrônica, com auxílio de primorosas guitarras distorcidas, bateria quebrada e aspereza sonora, mas com fractais de MPB e rock. Chega com um passo diferente, em compasso diferente de fino pluralismo.

Com som imagético conectado à sensibilidade de pétalas em múltiplas tonalidades, Rebeca Matta dá uma grande contribuição a toda uma geração estimulada pela indústria do entretenimento a cair fora dos conteúdos para se agarrar apenas às formas das coisas. Sua trajetória revela permanentemente que existe alguém dizendo algo que pode ser sentido, sem disfarces e sem cobranças. A artista caminha lado a lado com o que faz, colocando a reta a serviço do ponto e dando à idéia de direção um sentido inconclusivo.

Em convergência de pele e no que há por debaixo dela, de rock, MPB e eletrônica, Rebeca afirma, sem ponto fixo, em pleno movimento, a renovação da Música Plural Brasileira, com ousadia, criatividade e muito talento. Com “Rosa Sônica” ela atesta o caráter fecundo da arte eletrônica. Entra em cena como um raio laser de sons, uma reverberação de massa estelar, comumente relacionados a aparatos tecnológicos de visualização. Mas que Rebeca Matta mostra que é bom de ouvir, dançar e ornamentar travessias.