Está cada dia mais difícil de se falar alguma coisa diante das vociferações que estão soltas por aí. Paira no ar um certo sentimento de obrigação de assumir publicamente crenças circulantes como se elas também fossem suas. Embora sejam constituídos por palavras, os brados estridentes funcionam como espantos voltados para a retirada da voz e sua condição de elaborar e transformar sentidos.

Essas vociferações são imperativas, exigentes e funcionam como meio para a obtenção de satisfações a qualquer custo. Muitas pessoas até gostariam de não se submeter a isso, mas, como não conseguem se valer das palavras para expressar seus desejos recalcados, passam a integrar os contingentes portadores de alucinações psicóticas, ensurdecedoras e de perfil invasivo.

Modeladas por discursos depreciativos e acusatórios, as vociferações decorrem da conjunção de diversos fatores que se fortalecem entre si, exacerbando os mais baixos instintos humanos. É que o mundo ficou pequeno demais para a sanha das oligarquias econômicas e seus controles dos Estados-nações, daí as corporações insaciáveis terem elegido os direitos básicos das pessoas e os direitos políticos de cidadania como inimigos.

A complexidade desse assunto está tratada no livro “O discurso da estupidez” (Iluminuras, 2020), de Mauro Mendes Dias. O psicanalista paulistano aborda a questão das vociferações a partir da recusa da possibilidade de diálogo. As crenças criadas e seguidas como uma espécie de ‘exterioridade íntima’ impõem limitações à escuta, dando ouvidos apenas ao absoluto do rumo a ser seguido por quem não precisa pensar para agir, nem se preocupar com as consequências dos seus atos.

Vociferar é puro reflexo emocional de desiludidos, fanáticos e outros desinteressados em dialetização. Daí o predomínio do verniz religioso na instrumentalização da fé e a intolerância a artistas, cientistas e a quem defende igualdades. Esse é um fenômeno que ocorre comumente em lugares onde existe ódio voltado para destruir tudo que possa representar ameaça de privação ao gozo das próprias vontades.

Rinoceronte (1960) em desenho do humorista e pensador carioca Millôr Fernandes (1923 – 2012). Arquivo do jornalista Otto Lara Resende (1922 – 1992) / Acervo do Instituto Moreira Salles (IMS).

Em situação de anti-alteridade, os instigadores e beneficiários de vociferações propagam a palavra ‘liberdade’, não como o direito que orienta relações entre diferentes, mas como uma força direcionada a atropelar o que for preciso para seguir o que está definido pela recusa geradora da suspensão da condição de fala. Mauro Mendes Dias entrelaça estupidez e vociferação como condições que nos habitam e que não são necessariamente de direita ou de esquerda.
O autor cita a peça “O Rinoceronte”, de Eugène Ionesco (1909 – 1994), na qual as pessoas que se metem a permanecer falando ante o barulho da manada perdem a condição de serem ouvidas. No meu livro Código Aberto (Cortez Editora, 2019), refiro-me a essa obra do dramaturgo romeno como uma metamorfose dogmática de como é feita a adesão ao fascínio do estrondo e como se dá o arrebanhamento de quem procura permanecer em estado humano.

Transgredir o imperativo das vociferações é necessário para arrefecer essas paixões destrutivas. Porém, antes de combater discursos vociferantes, Mauro Mendes Dias propõe que se procure refletir sobre o que cativa tanta gente à incondicionalidade bestial. Sugere que para o esvaziamento de vociferações não se deve abrir mão da produção de significações, a fim de manter sempre atualizada a presença da voz na comunidade de sujeitos que acreditam na redução da atração política pela repugnância.