Para tornar viva a ação
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Sábado, 22 de Julho de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Na primeira metade dos anos 1980, nascia em Fortaleza uma Oficina de Quadrinhos e Cartuns, idealizada e coordenada pelo professor Geraldo Jesuíno, então professor do Curso de Comunicação Social da UFC e presidente da Imprensa Universitária. Naquele mesmo momento criava-se na França o Tailler-Escuela de Historietas, da Escola de Artes de Angulema. Tinham mais ou menos o mesmo número de participantes. No máximo 15 pessoas. Com uma diferença: na oficina francesa, depois de três anos de freqüência o estudante recebia um diploma, válido em todo o país, atestando que ele tornara-se especialista na arte e na técnica das HQs.

As experiências de ensino na área dos quadrinhos na Europa já contavam com umas duas décadas e isso aparentemente tornava mais fácil incluir em grades curriculares o estudo de desenho gráfico, semiologia, estética, história da arte, história das histórias em quadrinhos, técnica de impressão, cultura geral, enfim, tudo o que é necessário para a compreensão, desenvolvimento de aptidões e habilidades na produção de HQ. Por aqui, não. No início, a oficina criada pelo Jesuíno era quase informal. Recebia apoio como projeto de extensão universitária e contava com um grupo de aficionados em quadrinhos que ia para a universidade todos os sábados pela manhã, a fim de inventar tirinhas e colaborar com crianças que gostavam de desenhar.

Essa é uma memória que guardo com muita paixão daqueles encontros de inventividade. Tive o privilégio de, ao lado da Jane Malaquias, do Aloísio Gurgel e do Falcão, dentre outros, de integrar aquela equipe de sonhadores que fazem. Entrar naquela sala cheia de pranchetas cobertas por um macio plástico esverdeado fazia afluir um quê de aventura. Não havia qualquer direcionamento à imaginação, era um espaço de narrativas livres, de traços livres e de personagens com sentimentos parecidos com os nossos. Quando o Maurício de Souza veio a Fortaleza para o lançamento da Turma da Mônica no cinema, em 1986, falei para ele da existência da Oficina. Deixei-o pensativo, um tanto sem acreditar no que eu dizia. O certo é que ele atrasou a avant-première do filme para ir comigo ver de perto o que eu estava dizendo.

Precisava ver o contentamento dele naquele ambiente de criação espontânea. Trocou desenhos com as crianças e até fez um convite para o DAN ir morar em São Paulo para trabalhar nos estúdios da Maurício de Souza Produções. Mas o DAN era um garoto e seus pais não permitiram que ele fosse embora. Quando fui deixar o Maurício no cinema do Iguatemi ele me falou no caminho que conhecia muitas experiências de oficinas de quadrinhos no mundo, do Japão aos Estados Unidos, mas nunca tinha visto algo tão encantador quanto a nossa Oficina de Quadrinhos; funcionando sem matrícula, sem chamada, sem diploma, sem oferta de lanche e com tantas crianças talentosas reunidas para fazer histórias em quadrinhos em pleno sábado pela manhã.

A zona de influência da Oficina estendia-se além daquela sala mágica, aumentando o nosso interesse em valorizar as possibilidades dessa arte seqüencial. Em 1986, quando o Ziraldo assumiu a presidência da Funarte (Fundação Nacional das Artes), no Rio de Janeiro, ele teve a feliz ousadia de montar uma espécie de sindicato de quadrinhistas, inspirado no modelo dos “syndicates” anglo-americanos. Nessa época eu trabalhava no Segundo Caderno do jornal O Povo e, juntamente com o jornalista Miguel Macedo, conseguimos substituir parte da produção estrangeira que dominava o espaço das tiras de quadrinhos, por autores nacionais, a exemplo do Angeli, Glauco, Laerte e Fernando Gonsales. Mais do que isso, conseguimos ter espaço para a tira “Nó Cego”, do Cosmo, “Naftalinas”, minha e do Válber Benevides, e para a produção específica da Oficina, revezando trabalhos do Jesuíno e do Fernando Lima.

A empolgação foi tamanha que em 1985 eu cheguei a ir a São Paulo tentar negociar com a Editora Abril a publicação de uma revista, com uma família de personagens criados em parceria com o Válber. Não deu certo, mas ainda hoje guardo a carta do Waldir Igaiara (o primeiro desenhista do Zé Carioca) analisando cada um dos nossos personagens de forma simpática e positiva. Tempos depois, já nos anos 1990, fui casualmente apresentado pela cantora Mona Gadêlha ao Franco de Rosa, editor de quadrinhos da Nova Sampa Editora. Eu vestia com uma camiseta que estampava o Pochete Jr., um personagem da minha parceria com o Válber. O Franco gostou do jeitão do Pochete Jr., com sorriso metálico, numa cena urbana, encostado numa bicicleta e dizendo: “Ô mesmice cruel!”. Ele ficou doido pelo personagem, mas naquele momento, o Válber e eu já não tínhamos mais tempo para nos dedicar à produção de uma revista semanal como ele queria.

Estou contando tudo isso para ilustrar o quanto uma boa idéia posta em prática, como a Oficina de Quadrinhos, mexe com a gente. Teve uma vez que inventamos de fazer um jornal para circulação nas barracas de praia. Até os anúncios de rodapé eram tiras de quadrinhos. Chegamos a preparar as três primeiras edições da “Folha Higiênica”, mas a coisa não vingou. O Tarcísio Matos e eu escrevemos também uma história, intitulada “A herança de Tião Barbante” que foi quase toda quadrinizada pelo Cosmo. Contava a saga infeliz de um cidadão comum que, por conta de uma febre causada por bicho de pé, é assassinado lentamente pelos múltiplos efeitos colaterais provocados por algumas displicências e irresponsabilidades médicas e ambulatoriais.

Tudo isso colaborou para a minha alegria com o lançamento da nova revista Pium, da nova fase da Oficina de Quadrinhos, coordenada pelo professor Ricardo Jorge, realizado no último dia 14, no Centro Dragão do Mar. A Pium passa a ser temática e o tema da nova número 1 é terror: “Era uma noite escura e tempestuosa”. Fiquei imaginando o tanto de bons artistas gráficos que hoje temos em Fortaleza, que passaram pela Oficina: Weaver, Daniel Brandão, JJ Marreiro… Foi uma turma que chegou a levar o nosso contista maior Moreira Campos (1914 – 1994) para os quadrinhos e a dar sobrevida à revista Carbono 14, que, assim como a Pium, criamos na fase comandada pelo Jesuíno. Uma turma que passou a desenhar o Capitão Rapadura, do Mino, e a montar estúdios que vão muito bem, obrigado.

Quando criança, o hoje respeitado e disputado designer Geraldo Jesuíno era forçado pelo preconceito a ler histórias em quadrinhos às escondidas. Com a experiência inicial da Oficina conseguiu criar uma cadeira de HQ no Curso de Comunicação Social da UFC. Narrar histórias em sucessão de imagens, articulando discursos, planos e angulações, com interdependência, para tornar viva a ação é indiscutivelmente de grande valor no apoio à aprendizagem da comunicação. Devemos isso a ele. E quando vejo a Pium voltando a circular, como resultado do exercício de alunos e monitores da Comunicação, fico animado com essa movimentação de um novo grupo que responde por Dellano, Fred, All Silva, Neudson, Luciana, Evando, Marco, Juin, Felipe, Redi, Walfrido, Ramon e Diego. Criadores que acabo de conhecer e já começo a admirar. É gente segura, gente que para caminhar não caiu na esparrela de querer apagar os rastros que encontraram no caminho. Esse é um bom sinal de que podem realmente fazer o novo e abrir novas estradas futuro afora.